quarta-feira, 31 de julho de 2013

G, GG, M ou P.

“No presente a mente, o corpo é diferente
E o passado é uma roupa que não nos serve mais.”

(Velha roupa colorida, Belchior)

Às vezes lembro com nostalgia de algumas roupas que ficaram pelo caminho. Uma regata cinza canelada que me fez companhia por quase uma dezena de anos e foi devorada pelas traças e pela ação aparentemente abrasiva da minha intensa produção de fluidos corporais. Um tênis Adidas preto de camurça dois números maior que fedia horrores e me carregou por todo o segundo grau até acabar na lixeira da minha história. Tem roupas feias que marcam e roupas lindas que passam batidas no fluxo da memória. Todas elas, porém, deixam de nos servir.

O Maracanã que conheci entre 1987 e 2010 foi um camisão GG meio cafona que servia que era uma beleza. Ele vestiu o investível, aqueceu o corpo etéreo que emanava de suas costuras de ferro e concreto pisadas pela massa rubro-negra. Por vinte e três anos, incontáveis vezes me infiltrei nesse corpo monumental que o estádio vestiu. Essa roupa não serve mais, não existe mais.

Existe outra roupa. Uma camisa G-quase-M num corte mais fit, de estampas mais cool, um outfit mais in, seguramente. O corpanzil que entrava naturalmente no camisão não cabe na camisa G. Precisa emagrecer, encolher a barriga, usar uma cinta modeladora. Nesses casos em que a loja não dispõe de outros números no estoque, só resta ao corpo desistir da compra ou se ajustar à roupa. Desistir da compra não está em jogo: Maracanã e Flamengo são simbióticos. Resta emagrecer. Mas há limites, porque quem vestiu GG por sessenta anos não pode subitamente passar ao P, naturalmente. Mas precisamos emagrecer.

E não só. Emagrecer apenas não basta. A bermuda e a sandália que iam bem com o camisão não combinam com a camisa G skinny. É preciso arrumar um tênis e uma calça, eventualmente um cinto, tudo novo. E é preciso aprender o básico da etiqueta, porque se o camisão aceitava uma manchinha de gordura, uma pizza sob os braços ou uma gota de cerveja ou coca-cola, a G-quase-M não aceita. Estraga o tecido.

“Você não sente, nem vê
Mas eu não posso deixar de dizer
Meu amigo
Que uma nova mudança, em breve,
Vai acontecer
E o que há algum tempo era jovem, novo
Hoje é antigo
E precisamos todos rejuvenescer.”

(Velha roupa colorida, Belchior)

O novo Maracanã é confortável, iluminado, organizado, cheiroso, bonito. O campo fica bem perto do público e a acústica continua sendo fantástica. Comprei ingresso pela internet através do site do programa Km de vantagens, da Rede Ipiranga, com 65% de desconto e entrega gratuita em casa. Por R$35, recebi o ingresso na quinta-feira, com três dias de antecedência, na caixa de correio do meu apartamento. Uma hora antes do jogo, havia apenas cinco minutos de fila bem-organizada para passar pela catraca. Cansei de enfrentar três horas de fila para comprar ingresso por R40 ou R$50, depois mais uma ou duas horas para entrar no estádio, às vezes tendo que correr de cavalo da polícia. Seria estúpido reclamar agora.

A boçalidade nunca fez parte do espetáculo, nunca acrescentou emoção alguma à atmosfera da partida, jamais trouxe qualquer mística ao estádio. Foi o amor que formou o tal corpo etéreo que o antigo camisão vestia, o amor cantado com fibra por tantos milhares de pulmões ao longo de tantos anos. Foram os detalhes aparentemente pequenos, as estampas menores, o botão escondido no colarinho, que tornavam a coisa única. Foram as impressões desses movimentos que cartografaram a mágica do Maraca. Dizem que, a partir de agosto deste ano, vão recuperar a antiga rede, no formato véu-de-noiva, para jogos entre clubes. Ainda cabem quase oitenta mil pessoas, mais perto do campo que outrora, fazendo um barulho incrível, as organizadas ainda levam bandeiras, bandeirões, balões, papel picado, mosaicos, bumbos, o gramado ainda é um tapete.

No começo, vai parecer estranho. Vai parecer uma ida à casa da madame de camisa nova. Aquela sensação da costura pinicando o ombro sem que você possa fazer um movimento brusco para coçar, temeroso que está de derrubar um bibelô.

“Será que eu tiro o sapato na entrada?”
“O biscoitinho do lado da xícara de porcelana é de comer ou de enfeitar?”
“Palavrão, rola?”
“Onde fumar? Onde peidar?”

Algumas indicações dos mapas antigos estão ali, outras desapareceram para sempre. É preciso recartografar o Maraca emocionalmente. É urgente. É possível.


E precisamos todos, todos emagrecer. Feliz e infelizmente.


Por Bruno Passeri.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Festa em que favela?


Achei que não suportaria ver o novo Maracanã. Pelo que tantos em quem confio a opinião disseram, achei que o Maracanã S.A me causaria um buraco irreversível no estômago  quando eu subisse pelo túnel - como fiz arrepiado outras tantas vezes - e não sentisse nada. Só um melancólico e sorumbático vazio de quem encontra um ex-amor e descobre, da pior forma possível, que ali não há mais nada, nada além de boas lembranças. Você quase pode ver a dose que havia guardado de paixão, justamente para esse dia, abandonando seu corpo, unindo-se ao ar e se esvaindo num último e mortal suspiro.

Visualizei esse momento muitas vezes durante a Copa das Confederações; enquanto imaginava as reais dimensões do novo gramado pela TV; enquanto cada bola morta não podia ter seu merecido descanso, mas sim batia dentro e voltava à meia lua por conta da rede dura e fria que a FIFA preferiu; enquanto olhava para aquelas cadeiras confortáveis e coloridas imaginando quanto se cobraria por elas.

Talvez na cegueira causada pela ansiedade e também pelo medo, esqueci os "detalhes". E ontem, no Flamengo e Botafogo, foram os detalhes e o comportamento que mais me chamaram a atenção Maracanã S.A. Confesso não ter ficado tão indignado com a arquibancada, a disposição dos lugares, o campo, e mesmo a rede me passou um pouco despercebida. 

A primeira coisa que me chamou a atenção foi a fila que se encontrava na clássica entrada do Bellini. Na minha cabeça, eu estava indo a um espetáculo da Broadway: casais impecáveis, mulheres com botas elegantes e casacos de couro, velhos bonachões, filhos e netos engomados, um cheiro de pipoca de cinema no ar, um chão brilhoso, luzes de neón iluminando palmeiras simétricas, e o único barulho que se ouvia era do burburinho de conversas e comentários comedidos. Eu estava completamente perdido. Perfeitamente treinada para auxiliar pessoas desencontradas como eu, uma funcionária feliz demais para o meu gosto espiou meu ingresso e me deu a facada: "Sua entrada não é esta, senhor, é ali pela lateral. Bom jogo" e abriu um largo sorriso quase de desdém como quem expulsa alguém de sua própria casa.

Desencontrado dos meus amigos e em cima da hora da partida, fui caminhando vagarosamente num silêncio que o Maracanã só deve ter conhecido em dias de tragédias futebolísticas, como a vitória do Uruguai, em 50, e a do América do México, em 2008. Por sorte, achei meus companheiros antes de chegarmos à entrada e não podermos prosseguir por um deles estar sem camisa. Ele soltou uma risada debochada sob os olhares desconfiados do policial, colocou a camisa, e então prosseguimos. Tristes, perdidos e subindo pela primeira vez na vida por uma rampa que não é a do Bellini. 

Ficamos no meio da Raça Rubro-Negra, então é difícil falar do comportamento da torcida como um todo. A empolgação me pareceu a mesma, mas havia bastante gente sentada (nada de lugares marcados, não ali) e havia uma quantidade de brancos na torcida do Flamengo que eu também nunca tinha visto e que me incomodou. No intervalo, o sistema de som Maracanã S.A soltou Não Me Deixe Só - Vanessa da Mata, e se pode ouvir uma pequena gargalhada geral. No Fluminense e Vasco, haviam tocado o hit "Show das Poderosas", de Mc Anitta, e recebido uma longa vaia. Uma absoluta falta de tato dos mega-super-empresários e administradores que não entendem um pingo de futebol, estádio, paixão e povo.

No fim, com o empate do Flamengo no último minuto com gosto de vitória, lembrei do estádio dos velhos tempos e no que a torcida pode transformá-lo, independente de como esteja. Saí com a sensação de que a aura do Maracanã ainda está ali, mesmo que solta, suspensa no ar. Ainda há a velha alma no novo Maraca, ainda que tenham feito de tudo para afastá-lo dos pobres, das "massas exaltadas" e torná-lo um espetáculo completo para uma família de classe média num domingo despretensioso. Com todo respeito, talvez o público do Fluminense esteja mais disposto a aceitar que assim seja, e também por isso o clube fechou contrato de 35 anos com o consórcio que administra o estádio. Isso não é uma provocação, e sim uma constatação óbvia ao se observar as torcidas de cada time. 

Fiquei constrangido quando um couro de "Festa na favela!" começou a ecoar já nos entornos do estádio, e aquelas pessoas estavam indo buscar os carros estacionados e concluir o domingo de compras no Shopping Tijuca, a algumas quadras dali.


Por Beto Passeri.





sexta-feira, 26 de julho de 2013

A madame na laje e o transatlântico na piscina



A madame do Morumbi que, por caprichos do destino, for comer um churrasco assado num bujão de gás cortado ao meio sobre uma laje de concreto em Paraisópolis, a favela que fica logo ao lado do bairro nobre da capital paulista, terá que rever alguns conceitos para dançar a música da festa. Revendo-os, ela poderá se integrar perfeitamente à festa e acabar se transfigurando naquele ambiente, ou apenas comer a asinha, tomar um guaraná Convenção, eventualmente uma cerveja, dançar um pouco de Racionais MC’s, tirar foto com as meninas, beijar as tias, pedir a benção e voltar ao seu universo de mármore com alguma coisa transformada dentro de si, ou ainda manter a cara endurecida de medo, impermeável à linguiça, ao rap, à tia e à sobrinha, manter as convenções em riste e correr para sua poltrona Karim Rashid com mais cagaço daquele mundo do que tinha antes, isso se não ficar porventura no caminho, depois de bater atordoada seu Mercedes na moto de um cidadão bem menos amistoso do que o pessoal da laje. É um nó existencial colocado à madame pela ida à laje. 


A diferença entre o São Paulo e, digamos, o Criciúma disputando a Série A na rabeira da tabela é enorme. O Criciúma não está na primeira divisão a passeio, claro, mas cada canto do Heriberto Hulse sabe que as aspirações do Tigre são, no fim das contas, permanecer e quando muito beliscar uma vaga na Sul-Americana. Sua torcida está ciente do quanto precisa se esforçar para fazer daquele modesto estádio um caldeirão capaz de fornecer ao time alguns pontos providenciais, seu time sabe do que é capaz e seu treinador tem consciência dos inexorabilíssimos trabalhos que essa escalada para não cair demanda. O São Paulo é o exato oposto.

Há diferença clara entre escalar uma montanha olhando para cima e pensando em fincar a bandeira no cume e escalar a mesma montanha olhando para baixo com receio do tamanho do tombo. Na primeira opção, uma força surge dentro do alpinista e o empurra para cima; na segunda, a mesma força emperra a subida, qualquer vento balança e a chance de queda aumenta consideravelmente.

Paulo Calçade, comentarista da ESPN Brasil, relembrou no último “Linha de passe”, a respeito da situação do São Paulo, o ditado que diz que não é fácil manobrar transatlântico dentro da piscina. O São Paulo é um enorme transatlântico. Quando esse tipo de coisa acontece com um time grande, a bola não entra, o goleiraço leva frango, o artilheiro fura a bola, o zagueiro escorrega. E pior: essa madame, particularmente, nunca na vida foi à laje.

Porque quando um Flamengo ou um Corinthians ou um Vasco ou um Grêmio lutam contra o descenso, algo se transforma nas massas. Elas pressionam com críticas pesadas, mas a mesma força usada para vaiar eventualmente se vira a favor do time, a massa entope as arquibancadas e algo conspira para fazer entrar a bola que até ali não entrava. Mais: esses times já se calejaram na missão, sabem que, mais cedo ou mais tarde, é preciso, nesses casos, abandonar qualquer filosofia utópica de jogo, contratar um Joel Santana ou um Celso Roth, escalar quatro volantes, cinco zagueiros, jogar à paraguaia no bumba-meu-boi, meter a faca entre os dentes e tentar arrumar um pontinho sempre que possível até chegar aos 45 pontos que vão livrar do vexame.  O time do Flamengo que protagonizou a arrancada fantástica de 2007, saindo da degola para a terceira colocação em pouco menos de vinte rodadas, era escalado por Joel Santana com Jailton, Cristian, Toró e Ibson no meio-campo. Quatro volantes, dois ruins e dois medianos. Todos correndo atrás do adversário como se fosse a última costelinha do barbecue. O público do Flamengo naquele ano, em que pese a precariedade técnica do time, foi de quase 45 mil pessoas em média. Eu vi jogos naquela campanha no Maracanã em que a bola entrou de teimosa. Um deles, inclusive, contra o próprio São Paulo, então líder absoluto da competição, foi um espetáculo nas arquibancadas lotadas que parecia decisão de Libertadores. O jogo truncado acabou em 1 x 0 para o Flamengo, gol de Ibson, uma vitória que consolidou a guinada do time na tabela. Vi de longe coisas semelhantes acontecerem com outros times em situações parecidas.

É preciso comer a asinha. Roer o osso com vontade, lambuzar a cara de gordura de frango e de risole e depois desengasopar a comilança arrotando com um bom gole de guaraná Convenção ou cerveja Cintra. E aí você volta para casa numa boa.

O São Paulo precisa saber disso. Sua torcida precisa colocar mais do que as cinco, seis mil pessoas que transformam o Morumbi em castelo mal-assombrado com sua escassa presença e o uuhh das vaias. Paulo Autuori, se não quiser perder o cargo para um Joel ou Roth (acho difícil que Muricy queira assumir essa mamona), precisa entender que, no momento atual, não há filosofia de jogo, conceito de futebol e discurso loquaz que desentorte o rabo da porca. É sensato arrumar três ou quatro caras dentro do elenco que corram por ele e, não importa a qualidade técnica desses caras, escalá-los no meio-campo. É preciso entender que, por mais que Lúcio seja um pentacampeão internacionalmente consagrado e que suas subidas ao ataque sejam notáveis, ele precisa é se aquartelar no primeiro quarto do campo, jogando para a arquibancada qualquer coisa que se pareça com a bola e se aproxime da área são-paulina. É fundamental entender que o Ganso não pode pegar nem a vassoura para varrer o vestiário de um time nessas circunstâncias, quanto mais ser titular da meiúca. Tudo o que sempre foi bonito e tornou o São Paulo um clube diferenciado nos últimos, digamos, vinte e cinco anos não vale um centavo agora. Sigam cagando a pompa que cagaram nas últimas três décadas e verão o que uma temporada correndo de cachorro brabo pode reservar.

Não adianta chorar, madame. Você está na laje, e é melhor beliscar seu croquete, enfiar os córneos na sua asinha e no seu copinho de cerveja e dançar a música que está tocando como se fosse a mais divertida do mundo. É isso ou ano que vem o churrasco vai ser você.

Por Bruno Passeri.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

A hora e a vez de Alex Stival: a trajetória de Cuca e a oportunidade de ouro do futebol brasileiro hoje à noite, no Mineirão.



Alex Stival, o Cuca, é o principal personagem do futebol brasileiro atual. Personagem no sentido dramatúrgico mesmo, como herói de uma jornada narrativa. Nesse sentido, não há enredo mais rico para se narrar no futebol brasileiro nos últimos anos.

Cuca foi um bom jogador, atacante de gols decisivos, como o que deu o título da Copa do Brasil de 1989 ao Grêmio, time por que jogou mais tempo. Jogou também por outros clubes grandes do Brasil, participou de uma convocação da seleção brasileira, teve breve passagem pela Espanha e pendurou as chuteiras em sua cidade natal, jogando pelo Coritiba. A partir daí, Cuca se formou em Educação Física e Ciência do Esporte. Estudou um bocado antes de dar o pontapé inicial em sua carreira de treinador, dirigindo o Uberlândia. Seu primeiro trabalho interessante foi deslocar o Goiás da lanterna para a nona posição do Brasileirão-2003 em apenas um turno. Esse trabalho foi, digamos, a entrada definitiva em sua jornada do herói.

O São Paulo de 2004: indícios de tragédia e glória

O primeiro grande desafio foi realmente grande. Foi a primeira vez que exibiu seu trabalho num clube grande e foi também a primeira vez que conheceu uma derrota doída. À frente do São Paulo, Cuca chegou às semifinais da Libertadores em 2004 e foi eliminado pelo até então incógnito Once Caldas, da Colômbia, que depois arrebataria a taça sobre o Boca Juniors, em plena Bombonera, e perderia o título mundial para o Porto de Mourinho, Deco e Carlos Alberto. À época, Cuca já demonstrava os primeiros traços de sua personalidade intensa. Extremamente inteligente e corajoso em suas decisões de jogo, visionário na contratação de jogadores promissores, Cuca parecia um tanto irascível fora das quatro linhas, aparentando um certo excesso de pulsação que talvez fosse a ansiedade do gênio em queimar etapas de sua trilha, ou simplesmente imaturidade emocional para a envergadura de sua posição. Fato é que Cuca se desgastou com a diretoria do São Paulo e foi demitido, deixando como legado a contratação de jogadores como Danilo e Grafite, até então ilustres desconhecidos, e a montagem da base do time que, no ano seguinte, conquistaria a mesma Libertadores da América e o Mundial sob comando de Paulo Autuori.

Grêmio, Coritiba, Flamengo, São Caetano: itinerância e ressaca

Depois Cuca teve uma meteórica e fracassada passagem pelo Grêmio em 2004. Saiu do clube depois de um mês, incapaz de desfibrilar um péssimo time que acabaria sendo rebaixado à série B meses depois. A seguir, em 2005, Cuca assumiu um dos piores times da história do Flamengo e permaneceu apenas quatro meses no cargo. Outros assumiriam a cadeira até que o Flamengo escapasse do rebaixamento na bacia das almas sob comando de Joel Santana. A ressaca do São Paulo parecia não lhe sair da cabeça, e Cuca não engrenava um bom trabalho nem era convidado a assumir times bem montados. A pedreira seguinte foi o Coritiba, pouco menos de um mês após sair do Flamengo. Por lá permaneceu cinco meses, até perder três partidas seguidas e deixar o posto. O trabalho seguinte ratificava a impressão de que Cuca, tão brilhante em seu começo de carreira no São Paulo, era mais um cometa entre os técnicos brasileiros. O São Caetano começava a decair de sua fase áurea no começo do século XX, perdendo a base do time que fez campanhas incríveis, como o vice-campeonato da Libertadores em 2002, e Cuca não foi capaz de encontrar soluções, saindo mais uma vez de um clube sem ser brilhante. Em 2006, o São Caetano seria rebaixado à série B. Havia uma sombra sobre Cuca ou ele simplesmente era um daqueles one-hit wonders, apelido atribuído no cenário musical aos artistas que conseguem emplacar apenas um grande sucesso de público em suas carreiras? 

O Botafogo de 2007: a inspiração e o desastre

A resposta começaria a vir no ano de 2006, quando um Cuca cada vez mais cismado, nervoso, cheio de tiques e repleto de soluções criativas na montagem de times, um Cuca revigorado, enfim, embora ainda um tanto sorumbático, assume um clube que era sua imagem e semelhança, ou vice-versa: o Botafogo. Mais uma vez Cuca apostou em sua capacidade de perceber talentos onde outros não enxergam e investiu suas fichas em Lúcio Flávio, que havia passado por alguns clubes sem grande destaque, Zé Roberto, que também havia rodado sem brilho, Jorge Henrique, revelação do Naútico que havia defendido cinco clubes em cinco anos de carreira profissional, e o brilhante e errático Dodô, que dois anos antes havia caído nas graças da proverbial torcida alvinegra. Botafogo, Cuca e seus principais jogadores eram então apostas arriscadas, cheias de poréns, que encaixaram como música. Por um ano inteiro (2007), o Botafogo jogou o futebol mais vistoso do Brasil, um time de toques rápidos, intensa movimentação, centrado no talento dos seus jogadores. Um belo time, de futebol delicioso, lindos gols e... azares fragorosos.

Esse belo time perdeu o título estadual para um Flamengo burocrático, caiu nas semifinais Copa do Brasil diante de quase 65 mil pessoas no Maracanã graças à atuação desastrosa da bandeirinha, um frango ridículo do goleiro no final do segundo tempo e, dizem as más línguas, ao azar que ronda Cuca. O Botafogo de 2007 liderou o Campeonato Brasileiro da sexta à décima oitava rodada, mas perdeu fôlego e encerrou a campanha em nono lugar, algo, aliás, que depois seguiria sendo a sina do clube, com ou sem Cuca. E ainda judiou de sua torcida perdendo a classificação nas oitavas-de-final da Copa Sul-Americana em Buenos Aires para um River Plate combalido pela expulsão de dois de seus jogadores durante a partida. Cuca pediu demissão, mas assumiu novamente o cargo uma semana e meia depois. Levou o time à nova decisão do estadual, mais uma vez perdida para o Flamengo, ocasião em que se deu mais um dos episódios que reforçariam a letra escarlate de sua personagem, a sombra do azar e da superstição: Cuca, o então presidente do Botafogo, Bebeto de Freitas, e os jogadores de pé diante das câmeras protagonizando a reclamação que ficou conhecida como o chororô botafoguense. O futebol cativante e a disputa à vera de competições que o Botafogo nem sonhou disputar nos dez anos anteriores não foram suficientes para a torcida e a diretoria do clube decidiu demitir Cuca. O ônus ficou para a história do treinador, sem que os louros de tamanha façanha fossem devidamente creditados em sua conta.

Novas itinerâncias, o primeiro título e o primeiro milagre

Cuca teve passagens ruins por Santos e Fluminense em 2008. Mais uma vez, a síndrome de um grande trabalho que acabou sem título e sem o devido reconhecimento parecia assombrar sua carreira. Quando, em 2009, Cuca ganhou seu primeiro título, comandando o Flamengo contra o Botafogo na decisão do estadual – a terceira seguida vencida pelo time da Gávea sobre o rival -, parecia que o horizonte clarearia. Cuca vinha de um título e ganhava um reforço importante, Adriano Imperador, para disputar o Brasileirão. Mas não. Uma campanha pífia e desentendimentos com os principais nomes do elenco fizeram-no perder o cargo. Dois meses depois, ele assume um Fluminense em estágio terminal na série A. Para livrar o tricolor do rebaixamento, seria preciso, segundo matemáticos estimavam à época, reverter um quadro de 98% de possibilidade de descenso. Cuca não apenas operou o milagre, montando das cinzas das Laranjeiras um time interessante que venceu praticamente todas as partidas restantes e ainda chegou à final da Copa Sul-Americana, onde foi batido pela LDU. De novo, Cuca havia montado um time competitivo e de futebol interessante de onde ninguém esperava nada, chegado a competir em alto nível com esse time. E, de novo, Cuca colheu créditos minguados pelo feito. Quatro meses depois de sacramentar a permanência incrível na série A, o Fluminense demitiu o treinador por maus resultados no Estadual de 2010.

O nascimento do personagem e o flerte com o desastre

O tempo e os castigos do destino não endureceram Cuca, mas tornavam-no, pouco a pouco, tanto menos intempestivo quanto mais apegado às suas manias e convicções. Tornavam-no um verdadeiro personagem, com trajetória tão sinuosa quanto especial, cheia de dramas e injustiças, episódios pitorescos e fantásticos. Cuca passava a ser um herói contemporâneo, contraditório e cativante. Em 2010, assume o Cruzeiro. Novamente, fez de um time desacreditado uma equipe de encher os olhos. Apostou de novo em sua sensibilidade para talentos desconhecidos e montou um esquema envolvente, bem treinado, de toques rápidos, marcação por pressão, intensa movimentação e vocação ofensiva. O time foi vice-campeão brasileiro. Em novembro já havia garantido com antecedência a classificação do Cruzeiro à Libertadores do ano seguinte, na qual comandou uma das campanhas mais impressionantes vistas até então na primeira fase do certame, com direito à goleada de 5 x 0 num Estudiantes que dois anos havia surrupiado o título do celeste belorizontino em final disputada em pleno Mineirão. Mais uma vez, porém, havia uma pedra no meio do caminho e Cuca cumpriu sua sina. Nas oitavas-de-final, após ter vencido o jogo de ida por 2 x 1 em Manizales, Colômbia, o Cruzeiro de Cuca perdeu por 2 x 0 em Sete Lagoas para o Once Caldas, aquele mesmo que lhe havia tirado a chance de disputar o título da Libertadores em seu primeiro grande trabalho, em 2004, com o São Paulo. Mais uma vez, o eterno retorno de Cuca ao destino duro o fez sair achincalhado de um Cruzeiro que montou com maestria, chegando muito perto do êxtase e batendo na trave. Sem perdão, o futebol. No mesmo ano, repetindo outras ocasiões na trajetória stivaliana, o Cruzeiro deixado por ele se livraria do rebaixamento na última rodada com goleada de de 6 x 1 sobre o arquirrival Atlético, então dirigido por... Cuca!

A chegada ao Galo: histórias a serem rescritas

É que ele assumira, meses antes, a direção de um Galo ameaçado pelo fantasma do rebaixamento. Não era a primeira vez que Cuca passava por isso, aliás. O trabalho começou como um verdadeiro causo, mais um na trajetória do herói. O presidente do Atlético, Alexandre Kalil, procurava um treinador para o time após demitir Dorival Júnior em razão da péssima campanha na série A. Nem passava por sua cabeça o nome daquele que havia sido defenestrado meses antes pelo arquirrival. Foi o filho do presidente que o convenceu de que Cuca era o nome certo. “Quem pode conhecer melhor o time do Galo do que um técnico do Cruzeiro?” foi a pergunta de filho para pai que selou o destino de Cuca. O começo foi trágico: seis derrotas em seis partidas e um pedido de demissão revertido pelo próprio elenco, que insistiu na permanência do comandante. Ele permaneceu, com a anuência de Kalil, e consegui fazer grande campanha, mais uma vez salvando do rebaixamento quem já não parecia capaz de se salvar. A derrota para o Cruzeiro, em jogo que poderia ter decretado o rebaixamento do arquirrival que dirigira até o começo da mesma temporada foi um duro golpe para o clube e para Cuca. Mais um.

No primeiro semestre do ano seguinte, Cuca se sagraria bicampeão mineiro. E seria eliminado precocemente na sempre madrasta Copa do Brasil. Mas Cuca e Kalil houveram por bem mudar o curso do destino, e foram buscar alguns nomes fortes e outros desacreditados no mercado. Victor foi um investimento pesado, era um goleiro valorizado por grandes campanhas no Grêmio e convocações para seleção. Jô havia sido afastado do Inter e rondava aquela duvidosa nuvem de nomes que ninguém sabe se valem a aposta, mesmo caso de Ronaldinho, recém-saído do Flamengo após polêmicas extracampo, péssimas atuações e uma vergonhosa eliminação na Libertadores. Cuca estava transformado. Cada vez mais sereno, embora cada vez mais cheio de tiques e manias, ele foi montando, pouco a pouco, o melhor time de sua carreira, um dos melhores times produzidos no Brasil no século XXI e possivelmente o melhor time da história do Atlético. Com futebol extremamente corajoso, envolvente, rápido e comprometido, o Atlético jogava mais bola, mas pontuava menos que um Fluminense do tipo relógio-suíço, e acabou ficando com o vice do Brasileirão, seis pontos atrás do time de Abel Braga. Mais uma vez, batia na trave a redenção de Cuca.
  
Em 2013, Cuca se sagrou tricampeão mineiro e comandou o Atlético na campanha mais sensacional que vi um time brasileiro fazer na Libertadores. Tudo o que sempre pareceu ser o destino de Cuca e do Atlético, as derrotas doídas, as bolas aventureiras cortando sonhos pela raiz, a falha da arbitragem a favor do adversário, a síndrome de vítima do azar, tudo foi sendo drenado pela incrível intensidade do time, jogando um futebol corajoso, mesmo nos momentos mais críticos, como, por exemplo, no jogo de volta contra o Newell’s, no Estádio Independência. Foi o próprio Kalil quem disse, após essa vitória antológica, que eles estavam mudando a história do Atlético. Cuca também está mudando a sua.

Um sujeito diferente

Mudou sua postura diante dos fatos, se tornou um cara mais seguro de suas virtudes e de seus defeitos. Passou a ser mais espontâneo, mais honesto, tirou o peso sempre presente em seu semblante. Hoje é inegavelmente o melhor treinador em atividade no futebol brasileiro. Mais que isso: carrega aquela imanência dos gênios, algo excêntrico, algo profundamente concentrado, alguma coisa em sua figura que o desiguala dos demais. Há gênios, no futebol e na vida, que são fenômenos de autoconfiança, atravessam ambientes (no caso do futebol, gramados) derrubando tudo em volta sem pestanejar. Vi alguns assim no futebol, Romário sendo o maior deles. Há também os gênios que são aéreos, excêntricos, muitas vezes inconstantes, quase sempre pouco carismáticos. Ronaldinho é assim, Messi também. E há os que carregam uma letra escarlate, uma marca indelével do peso do mundo sobre suas costas, certa dor ou angústia no semblante, impaciência exponencial, uma inquietude que os obriga a se alimentar de grandes mudanças, o que volta e meia os leva ao fracasso. Às vezes, uma figura assim leva anos para encontrar um tempo e um lugar onde possa desenvolver suas virtudes com mais serenidade. Às vezes, nunca encontra e vaga perdida em sua própria ebulição interna. Quando um gênio como esse murcha em seus fracassos, a história é punida com lacunas. Quando desabrocha, é escrita em negrito.

Lembro de ter percebido esse caráter em poucos personagens do futebol. Telê era um deles, talvez o maior. Levou muitos anos para que pudesse receber os créditos que mereceu ao longo dos anos, quando montou o Fluminense campeão brasileiro de 70 (Torneio Roberto Gomes Pedrosa), o Atlético campeão brasileiro de 71, o Grêmio campeão gaúcho de 77, após oito anos de hegemonia colorada, ou quando montou um dos times mais brilhantes da história do futebol, a seleção de 82, duramente punida por Paolo Rossi na tragédia do Sarriá. O estigma nublou suas conquistas e a poesia de sua filosofia, que atribuía pouco valor à vitória pela vitória, ao ganhar a qualquer custo. Só quando conquistou todos os títulos que lhe estavam disponíveis pôde usufruir do reconhecimento, o que pouco lhe valia internamente, porque mesmo depois de ganhar, por exemplo, quatro títulos internacionais em um ano pelo São Paulo (Libertadores, Mundial, Recopa e Supercopa de 1993), Telê seguia mastigando violentamente seu chiclete, cerrando as sobrancelhas à beira do campo e procurando onde estava a brecha para a nova transformação no que já parecia perfeito aos olhos dos mortais.

Cuca me passa uma sensação parecida quando o vejo em ação. Não quero dizer, com isso, que Cuca seja Telê. Quero dizer que algo em Cuca me escapa à razão estrita, como escapava em Telê e como escapou em raríssimos personagens que conheci na história recente do futebol. Fora o comportamento sempre inquieto, Cuca montou um grande time, desenhou e regeu um futebol há tempos esquecido em solo brasileiro. Prestou um serviço inestimável à tradição do nosso jogo com este Atlético que hoje joga a sorte contra o Olimpia, no Mineirão lotado. É preciso “apenas” ganhar por dois ou mais gols de um dos gigantes do futebol sul-americano. Será um fio desencapado, mas é possível. Ganhando ou perdendo, hoje e sempre, seguirei acreditando que Cuca pode se tornar um dos maiores treinadores da história do nosso futebol. O jogo brasileiro precisa se reencontrar, precisamos nos religar à tradição que nos levou a sermos o que somos. A seleção brasileira dirigida por Felipão na Copa das Confederações deu um passo firme, mas sem dúvida Cuca é o artífice maior desse processo em solo nacional. Apesar de não ser torcedor do Galo, apesar de ser fã do jogo de fibra e milonga sul-americano e não ser fã de Ronaldinho, apesar de tudo isso, hoje vou torcer para o Galo como nunca torci para outro time - fora o meu, claro - antes. O título pode virar uma chave dentro de Cuca, quem sabe pode fazê-lo desabrochar definitivamente. Se isso puder acontecer, a final de hoje é uma oportunidade de ouro na história do futebol brasileiro.


Por Bruno Passeri. 

terça-feira, 23 de julho de 2013

A cartomante rica e os arrota-peru: a liderança do Botafogo, Juninho no Vasco e o castigo ao Fluminense.


Estaria arrecadando uma nota no cenário atual a cartomante que, no começo do primeiro Campeonato Brasileiro de pontos corridos, em 2003, tivesse lido no tarô que Botafogo e Coritiba dividiriam a liderança do campeonato dez anos depois. E seria rica atualmente a mesma vidente se pudesse ter lido entre as cartas que os líderes contariam com Seedorf, o então promissor holandês que entrava aqui e ali no lugar de Rui Costa, Rivaldo e Fernando Redondo no meio-campo do Milan que acabava de ser campeão italiano, campeão da Copa dos Campeões da Europa (era o nome da UEFA Champions League) e vice-campeão mundial para o Boca de Tévez e Iarley, e com Alex, que começava a dar sinais de amadurecimento assumindo a 10, ao lado de Zinho, no meio-campo de um Cruzeiro campeão estadual e da Copa do Brasil e que assumia a liderança do Brasileirão na oitava rodada para perdê-la apenas na décima sexta e na vigésima oitava para o Santos de Robinho e mantê-la pelo restante das 37 rodadas (naquela época, com 24 times, o campeonato tinha 46 rodadas, das quais 39 lideradas pelo time comandado por Luxemburgo), sacramentando a conquista da chama Tríplice Coroa (Estadual, Copa do Brasil e Campeonato Brasileiro na mesma temporada).

Embora o Coritiba tivesse até feito um bom ano de 2003, conquistando a quinta colocação no campeonato e assegurado vaga na Libertadores, não era exatamente um hábito dos coxas-brancas frequentar esse ambiente na tabela. E o Botafogo ainda não sabia, na metade de 2003, quando a cartomante hipoteticamente tirava seu tarô, se conseguiria o acesso à primeira divisão do futebol nacional jogando a série B daquele ano. Portanto, supor que dez anos depois esses times estariam onde estão seria um exercício de vidência extremamente apurada, o que nos dias atuais sempre pode render uma boa grana.

O que absolutamente significa dizer que Botafogo e Coritiba estejam por cima da carne-seca, pelo contrário. Precisam afirmar suas ascensões com títulos relevantes, que não ganham há pelo menos duas décadas. Em todo caso, parecem querer mudar, nos últimos anos, o conceito sobre si mesmos. O Coritiba evoluiu muito depois do trágico descenso de 2009. Montou times competitivos, fortaleceu o relacionamento com seu torcedor, disputou duas finais seguidas da Copa do Brasil (bateu na trave o tal título relevante), ficou sem a vaga na Libertadores em 2011 por um triz e segue habitando a primeira metade da tabela com mais frequência que a segunda. O Botafogo, a seu lado, vem desde o intrigante caso Cuca, em 2007, salvo alguns lapsos, montando times interessantes, namorando vôos mais altos e morrendo na praia. Desde que Seedorf chegou, porém, algo parece ter mudado na filosofia do clube sobre si próprio. Há dois anos não se ouve no noticiário do Botafogo as auto-referências proverbiais, as mandingas, o “tem coisas que só acontecem...”. Ouve-se falar sobre treino, futebol, vitórias, objetivos, ativação do (difícil) relacionamento com sua briosa torcida, e assim por diante. Falta carimbar a faixa.

Se a tal cartomante pudesse prever, sem tarô, que o barco do Vasco faria água depois de alguns anos de arroubos euricanos, seria mais dedução que vidência. Mas o Vasco é o Vasco e, ao contrário do Botafogo e do Coritiba, acaba carimbando faixas de um jeito ou de outro. A mais importante delas no período recente foi justamente contra o Coritiba, na Copa do Brasil de 2011, título que havia batido na trave em 2006, contra o Flamengo. Em 2012, a unha de um goleiro iluminado e a bola aventureira arrematada nos acréscimos tirou o Vasco de uma ótima campanha na Libertadores. “É o destino”, alguns diriam, mas talvez fosse preferível acreditar que os deuses do futebol sul-americano, sempre cheios de caprichos, mas raramente errados, souberam premiar a entrega e o talento do Corinthians naquele ano.

Da mesma forma que não é o destino que trouxe Juninho de volta à São Januário para a última missão de sua longa e vitoriosa carreira. Um ídolo do porte de Juninho, um dos últimos contestadores em atividade no futebol brasileiro, volta à colina para travar uma batalha que ainda acredita ser justa e válida: liderar um desorientado Vasco da Gama a permanecer lá de onde jamais deveriam tirá-lo. Pode-se acreditar no tarô, na física quântica ou seja-lá-que-diabo-for, mas calhou de a missão de Juninho começar justamente por um confronto metonímico com o Fluminense. Os ventos querem soprar a nau vascaína para mares aos quais ela não pertence, assim como o Fluminense quis assumir um lugar histórico que não era o seu no mitológico Maracanã. O Vasco, primeiro campeão do estádio, foi premiado com o lado direito das antigas cabines de rádio. Foi uma conquista histórica dentro de campo, não uma canetada. Por quase sessenta anos ali permaneceu sua imensa torcida nos clássicos, mas agora é a torcida do Fluminense quem deve ocupar a área. Juninho chega, então, com a missão de recolocar o Vasco em seu devido lugar, na História e no estádio. E o faz com genialidade e alma, arrasando com o jogo nos pés e nas palavras sempre duras e francas.

Quando o Brasil massacrou a Espanha pela final da Copa das Confederações, concordei com Júlio César: “existe uma hierarquia no futebol”. Não se pode negar. É possível enfrentá-la, com muito esforço, no campo, e o futebol é cheio de exemplos de times que reverteram sua inferioridade histórica jogando mais bola do que o adversário poderoso. Davi muitas vezes ganha de Golias, o que não faz de Davi, Golias e de Golias, Davi. O próprio Fluminense foi exemplo disso, quando conseguiu derrubar, um atrás do outro, São Paulo e Boca Juniors na Libertadores 2008, antes da trágica derrota na final para a LDU no mesmo Maracanã. Amanhã, por exemplo, veremos o Galo tentando cumprir essa missão contra o Olimpia pela final da Libertadores 2013, e que as cifras não enganem: o Davi, no Mineirão de amanhã, é o Atlético. Acima de tudo, é preciso reconhecer uma condição antes de superá-la.

Clássicos são clássicos, mas existe uma hierarquia também neles. Que a bonança e boa forma concedida ao Fluminense nos últimos tempos pelo destino e pelo plano de saúde não possam apagar a História, está claro e qualquer um pode ler nas cartas do tarô. Botafogo, Coritiba e Fluminense, cada um a seu jeito, tentam reverter a hierarquia do futebol. Neste final de semana, quis o destino premiar os que enfrentam essa batalha na grama e castigar quem tentou vencê-la no gabinete.


Por Bruno Passeri.