sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Pedagogia do Oprimido e espetacularização da dor

Foto: Marcos Ribolli (Globoesporte.com)

















Em 1968, exilado em algum lugar do Chile, o educador e filósofo Paulo Freire escrevia as palavras "Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor", as mais famosas de sua obra-prima, "Pedagogia do Oprimido". Não me arrisco a resumi-la, pois seria tão simplista que beiraria à heresia. 

Ontem, na Arena do Grêmio, criou-se muita expectativa em torno de mais um péssimo jogo do Brasileirão. O motivo: o goleiro Aranha, do Santos, vítima de racismo por parte dos torcedores gremistas no último dia 28, voltava ao estádio após o episódio e a consequente exclusão do Grêmio da Copa do Brasil. 

Vaiaram o goleiro Aranha no momento em que ele entrou para o aquecimento, como sempre vaiam os goleiros adversários. Vaiaram o goleiro Aranha em cada tiro de meta e a cada segundo angustiante que ele permanecia com a bola nas mãos, como não se costuma fazer. Xingaram o goleiro Aranha de tudo que se pode imaginar, exceto ofensas que pudessem ser enquadradas como racistas - afinal todas as câmeras e microfones estavam virados para as arquibancadas à espera de um suspiro incriminador.

Eu não esperava um pedido de desculpas ou aplausos da torcida do Grêmio ao Aranha, mas esperava menos ainda essa reação carregada de ódio. Frequento estádios desde antes de conseguir andar por contra própria, e o faço até hoje, religiosamente. Sou um dos maiores críticos da atual "ditadura do politicamente correto" que tem infectado todas as esferas sociais, dentre elas - e principalmente - o futebol. Mas eu não acho que "no estádio vale tudo". Não sei qual é o limite, mas sei que a torcida do Grêmio o ultrapassou com bastante folga. 

Não acho - que me perdoe Paulo Freire - que o Aranha queira ser opressor. Nem perto disso. Mas é tratado como tal, e é isso que mais me espanta nessa história toda. O Aranha está pagando por ter sido vítima de racismo.  Está sendo vaiado por ter denunciado um ato criminoso, enquanto aquela jovem que você provavelmente já viu o rosto (o bode expiatório da mídia e da justiça), está chorando e pedindo desculpas em programas de auditório. Quero evitar o maniqueísmo, mas textos de gente grande circularam banalizando o assunto e eximindo a garota de culpa. Diversas vezes o goleiro foi questionado se ia ou não aceitar as desculpas e se aceitaria se encontrar com a tal garota. Como o próprio atleta definiu, "queriam um circo".

Quando Aranha deixou o campo e se dispôs a falar com a imprensa, falou com sobriedade e muita coerência, como tem feito desde o início do caso. Até que uma repórter insistiu em perguntar se "as vaias não eram normais e por que não eram normais". Aranha encarou a repórter por alguns segundos como quem respira paciência e respondeu: "Você sabe que não eram normais e sabe o porquê. Ou você acha isso normal? Acha normal? Que bom, ein?", e se dirigiu ao vestiário de cabeça baixa, enquanto a repórter sorria, pateta, como quem tenta descredenciar um lunático. 

Tenho medo.


Aqui está o vídeo da entrevista coletiva do goleiro Aranha.



Por Beto Passeri.







segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Eram só crianças

Eram só crianças
correndo sem rumo,
flanando sem pouso,
uivando pra Lua.

Eram só crianças
pobres crianças,
num parque tristonho,
espalhando areia
com pés feridos.

Eram só crianças
que não sabiam o dia,
que não sabiam o mês,
que muito pouco sabiam
além das grades.

Eram só crianças
invisíveis e famintas,
que viram uma bola
que as fez chorar.

Eram só crianças
por entre os carros,
nem tão invisíveis,
não mais famintas,
espalhando areia
e
sonhos
e
sorrisos.

Eram crianças
parando o trânsito,
calando buzinas
e
angustiando os grandes.

Eram crianças
com pés feridos
transformando a vida
e
mudando o mundo.





Por Beto Passeri.