sábado, 21 de março de 2015

Há vinte anos, Darcy apontava para o bom senso

O antropólogo não se perdoa por ter acabado com os campinhos de futebol (reprodução/Youtube).

Darcy Ribeiro militou junto aos estudantes, aos índios e aos movimentos sociais. Embora tenha sofrido pujantes derrotas ao longo de sua jornada - integrava, inclusive, o governo João Goular derrubado pelo golpe de 1964 -, são muitos os seus legados; o Sambódromo e a Universidade Estadual do Norte Fluminense são resultados sólidos, irrevogáveis de sua atuação.

O professor, antropólogo e político, contudo, reconhecia um grande erro para com um símbolo da brasilidade. Em entrevista concedida ao Roda Viva em 1995 (para assistir, aqui), ele lamentou ter destruído dezenas campos de futebol para a construção dos CIEPs. O maior programa educacional da história do Brasil tinha como objetivo implementar a educação integral do Rio, na década 1980.

Devido à escassez de áreas para as escolas, à época, o governo de Leonel Brizola e Darcy Ribeiro cometeu tal equívoco. A autocrítica, realizada em rede nacional de TV, seguiu negligenciada pelos políticos por essas duas décadas. O esporte não foi o foco de políticas públicas efetivas nas esferas municipal, estadual e federal. Até uma Copa do Mundo passou e o erro foi reiterado. 

Dilma Rousseff fez parte do partido de Brizola e Darcy, o PDT. Quatro anos após sua chegada à presidência, ela parece ter sido tomada, de súbito, pelas recordações dos ensinamentos do dirigente de sua antiga sigla. A lei de responsabilidade fiscal no esporte é um aceno para uma perspectiva de mais políticas públicas para as práticas esportivas durante o segundo mandato da presidenta.

O esforço para a elaboração da medida provisória, anunciada nesta semana, ainda mostra uma tentativa de começar a compreender o esporte em sua plenitude, como fenômeno econômico, social, cultural e educacional. Com o texto em vigor, clubes terão de honrar compromissos trabalhistas e fiscais. A ideia é que eles deixem de ser maus exemplos para os seus torcedores.

É bem verdade que, entre a lamentação do então senador, na TV Cultura, e o tenso atual momento da presidenta foram sancionados o Estatuto do Torcedor e a lei Pelé. Muito pouco, para tanto tempo. Os pontos da MP foram articulados entre Casa Civil e o Bom Senso FC, associação de jogadores de futebol pelo bem do esporte. O grupo foi recebido no gabinete de Dilma antes das eleições de 2014.

Diferentemente de outras promessas voltadas para os setores sociais que catapultaram a petista para um segundo quadriênio em Brasília, essa foi escutada. O texto ainda passará pelo Congresso, o que deve ser temido, ante os embates entre Executivo e Legislativo. A cúpula da presidência deve fazer o máximo esforço para que as novas determinações não sejam engavetadas.

A medida provisória é importante para confirmar as origens políticas de Dilma, postas de lado no primeiro trimestre de 2015. A legislação será um legado do atual governo, positivo como os do professor Darcy Ribeiro. Também comprovará que a presidenta não ignorou, como tantos outros, a autocrítica do etnólogo dirigente pedetista.



Por Helcio Herbert Neto.                                                  

quinta-feira, 19 de março de 2015

Decidi jogar bola

Em 1964, a maioria pensou que a permanência dos militares seria efêmera. (Agência Brasil)


Pleno domingo. O barulho vinha das panelas, não de arquibancadas. A multidão caminhava nas ruas e não tinha como destino final o estádio. O adversário não nutria respeito algum para com o oponente. Em vez de abnegação, foco e raça, era o ódio o sentimento que corria pelas veias das gentes que marchavam em vias públicas no Brasil. Não havia, ali, nenhuma demonstração de aceno para conciliação e para compreendimento.

Precisava ser assertivo. Tomar partido, diante daquele transe coletivo. Nunca desfilaria acompanhado de Jair Bolsonaro, Coronel telhada, seus iguais, seus ideais. Embora o atual governo pratique políticas indefensáveis. Apesar de também haver reivindicações válidas por entre os cartazes. Nunca gastaria sola de sapato na saliva ácida de viúvas de uma Ditadura Militar que deixou 434 mortos e desaparecidos. Mau fui capaz de fatigar minhas retinas com a cobertura - ou apologia? - na TV.

Aquela cólera toda acabava por me combalir. Intervenção militar, ir à Cuba, impeachment. As críticas sem profundidade endereçadas aos manifestantes, de forma geral, também não me apaziguavam. O rubor que a tensão causava era um mau a ser expurgado, democraticamente. Era preciso vomitar aquela bílis. E a cerimônia tinha que acontecer no mesmo domingo, dia 15: dia do "Eu vou" - ou do "Não Vou".

Decidi, portanto, jogar futebol. Puxava o ar, partia em corrida, com ambição lacerdista. Ao perder a bola, vociferava impropérios udenistas. Quando me encontrava cercado pela marcação, tinha segundos de exílio, incomparáveis aos anos de sombras pelos quais passaram líderes sociais e políticos até a anistia e a reabertura. Tendo o placar sido alterado ao nosso favor, curtia instantes da cena na qual os adversários "sangravam", verbo usado, inapropriadamente, por Aloysio Nunes, às vésperas do protesto.   

Quando levava um corte ou errava na marcação, suspirava á la janguistas. Ao recuperar a bola e partir para o contra-ataque, exibia um peito inflado e a certeza no sucesso dos prestistas. Para delimitar (extremas) fronteiras, vale ressaltar que tudo foi feito sob a cadeia da legalidade. Diferentemente de militares e da UDN de ontem. Deferentemente de alguns golpistas travestidos de liberais dos dias de hoje. Uma coisa correr atrás da bola ensina: para haver jogo, é necessário quórum e adversário. Não nos cabe liquidar, trucidar, eliminar concorrentes.


Por Helcio Herbert Neto.                                                                 

terça-feira, 10 de março de 2015

Avelinos e Marinhos

A história de Avelino é rememorada por Daniel Aarão Reis no livro "Luís Carlos Prestes - Um revolucionário entre dois mundos". (Reprodução)

As recordações de símbolos populares se esvaecem, de maneira geral, entre os habitantes do território brasileiro. Principalmente fatos e versões ocorridos longe do Centro-Sul. Heróis de outrora ficam renegados aos livros empoeirados ou aos distantes círculos acadêmicos. Quando muito, movimentos, personagens e datas marcantes ganham uma medalha de honra ao mérito; entram em placas de nomes de rua, viram praças, mas não são revividos pelas gentes concidadãs.

Avelino Clementino de Barros. O nome não é reconhecido pela maioria da população brasileira. Ajuda pouco no ato de rememorar se for recordada sua profissão: músico, de um regimento de infantaria de Natal. No entanto, Avelino foi preponderante no levante de novembro  de 1935, um episódio marcante da República. Na década de 1930, apesar da esperança motivada pela chegada de Vargas à presidência, muitas das reivindicações populares ainda eram negligenciadas.

Para agravar a situação, o presidente pôs em vigor a Lei de Segurança Nacional, que intensificou a repressão aos opositores do regime. O quadro de ebulição culminou na insurreição capitaneada por Avelino, em Natal. Posteriormente, Luís Carlos Prestes e o Partido Comunista evocaram as rédeas do movimento, fazendo eclodir rebeliões também no Rio de Janeiro. Nome mais imponente no cenário político nacional, Prestes ficou reconhecido como o líder daquela que ficou conhecida como a Intentona Comunista.

Sem a atitude de Avelino, contudo, as reivindicações não teriam voz. Entre tantas atribuições, cabe também ao jornalismo, mais especificamente aos repórteres, trazer à luz essas histórias. E, nessa tarefa, não há restrições de editorias: existem instantes decisivos na Economia, na Cultura, na Política, na Cidade, no Esporte. Muitas vezes, os personagens são próximos e acessíveis, embora negligenciados. Como o músico de Natal, capaz de mobilizar insurretos.

É em busca de tal resgate que o livro "A Bruxa e as vidas de Marinho Chagas" se projeta. Figura muito presente da mesma Natal de Avelino, a proximidade do ex-lateral da Seleção Brasileira acabou sendo naturalizada, quase vulgarizada. A reação de quem ficava perto do antigo atleta do Botafogo tinha relação com os rumos que Marinho tomara durante as últimas décadas de sua vida. Por mostrar os becos onde o jogador se meteu, a obra é um mergulho na sombria vida dos ex-atletas.

A decadência dos últimos dias, contudo, não faz por desmerecer o trabalho de elucidação das glórias de Marinho Chagas. A fugaz ascensão no futebol nordestino, as inebriantes jogadas ofensivas do suposto defensor, e o reconhecimento internacional pelo atrevimento estão presentes, ao longo das páginas do livro. Ali também estão outras tantas passagens escondidas: a reverência de Bob Marley ao jogador, durante uma turnê do Náutico na América Central, figura entre as mais divertidas.

Embora incomparáveis em amplitude, ambos os casos suscitaram empatia dos potiguares. Em suas respectivas áreas, Avelino e Marinho foram importantes para a vida da capital do Rio Grande do Norte. Em um momento político em que parcela da sociedade brasileira questiona a participação política e social de nordestinos e suas opções eleitorais, é necessário que as jornadas épicas do atrevido atleta e do obstinado militante voltem à tona, rebatendo históricos preconceitos.
Por Helcio Herbert Neto.