domingo, 24 de março de 2013

A ditadura segue

(Foto: André Mantelli/ebc) Manifestantes se reúnem antes da entrada do Batalhão de Choque da Polícia Militar, na sexta-feira


A obra do rapper Criolo tomou um tamanho imensurável no Brasil de hoje. Muito devido ao sucesso da comunhão de ritmos que ele promove em "Nó na Orelha", seu último disco, que é o destaque da produção musical nacional, que anda envolta na decadência do rock e em uma MPB repetitiva e pouco inovadora. Contudo, não é só por isso que as músicas do MC Criolo Doido do Grajaú têm tanto apelo por esses dias. Os versos do cantor paulista traduzem melhor do que quaisquer outros escritos nos últimos anos o que acontece no país sede da Copa do Mundo de 2014.

Os saraus tiveram necessidade de invadir o prédio vazio do antigo Museu do Índio, e realmente o fizeram. Sem dúvidas, a Aldeia Maracanã foi o maior movimento em resposta às desigualdades praticadas pelo Estado brasileiro. De tão poderoso, conseguiu manter o edifício e eliminar a proposta inicial de um estacionamento no local. É inegável que houve excesso de agressividade na entrada do Batalhão de Choque para imissão de posse do terreno, na última sexta-feira. Até os mais reacionários vão concordar: socos, empurrões, sprays de pimenta e cassetetes nunca foram instrumentos de diplomacia. 

Logo naquele espaço, onde aconteceu a união de vários grupos que se opunham ao processo de higienização que está em curso em prol de uma Copa e uma Olimpíada belas e às políticas fundiárias, educacionais e esportivas realizadas nos últimos anos. A pungência de tudo que aconteceu no espaço desenvolvido pelo Marechal Rondon só será assimilada no futuro; já a compreensão da truculência usada ali pode ser esclarecida com lembranças de um passado nem tão remoto. Efetivamente, a repressão segue, meu amigo.

Memórias também evocadas pela figura do presidente da CBF José Maria Marín. A autoridade máxima do próximo mundial traz consigo um passado sombrio ligado aos governos que emergiram com o golpe de 1964. Seu pronunciamento, exigindo medidas efetivas contra a imprensa golpista, quando deputado por São Paulo, resultou na morte de Vladmir Herzog. Romário foi ao Congresso pedir a prisão de Marín. Uma petição pública tenta a sua destituição. Em resposta, um misto de rispidez nas respostas e ufanismo é adotado nos discursos de todas as autoridades da Seleção Brasileira e da organização dos megaeventos. Essa gente que mostra que está tudo sob controle e se diz, assim, muito sabida.

Eliomar, vereador pelo PSOL, no Rio, propôs uma lei que proíbe que repartições públicas tenham nomes de personalidades que foram ligadas ao regime militar. Assim, se aprovada, escolas, por exemplo, não poderão mais ter nomes de governantes do período da repressão. Em contrapartida, as reformas para a competição do ano que vem estão transformando estádio em arenas. Logo arenas... (Aliança Renovadora Nacional, o partido da ditadura, lembra?). Resquícios de uma época em que nas quebradas escorria sangue.

Em vídeo postado no youtube em setembro de 2010, Criolo faz uma paródia de "Cálice" que, de tão real e identificada com a atualidade, foi regravada por Chico Buarque em seu último disco ao Vivo, "Chico na Carreira". Naqueles 87 segundos de filmagem, o cantor traduz muito de sua proposta. Quase três anos depois, com os fatos desencadeados pelo descontentamento da sociedade civil com os processos desencadeados pelos grandes eventos esportivos e pela subsequente repressão dos governantes, o teor daqueles versos ainda é mais pulsante. A ditadura tem sequência.

                                                                                                          
por Helcio Herbert Neto.   



quarta-feira, 13 de março de 2013

Você nunca ouviu falar no velho Santiago


(Danilo Santos/ BFR/ Divulgação)

Perdoe sentenciar, mas são raras as pessoas que o conhecem. Santiago é o pescador cubano de "O Velho e o Mar", de Ernest Hemingway. Ao longo do clássico, esse personagem trava uma batalha com o maior peixe-espada da baía da pequena ilha. A temática parece simples, e é. Contudo, ao longo da história, quem lê percebe que o que se passa ali é muito parecido com as tarefas que as pessoas que andam por aí, nas ruas, estádios e filas do pão, tomam para si em suas rotinas. Tarefas absurdas, tão eficientes quanto empurrar parede ou enxugar gelo, que separam os mortais da glória.

Enquanto a batalha para levar aquela tonelada para a balança da peixaria segue, o velho estabelece uma relação com o espadarte que mordeu a isca. Em vez de ser tomado pelo ódio naquele momento de tensão, Santiago celebra o companheirismo. Embora tudo naquela situação indicasse que ele devesse salivar de raiva até chegar ao porto com a carcaça morta do peixe, ele mostra sua solidariedade. 

Esse é o princípio do esporte. Qual a razão das regras interpretativas, que geram polêmicas sem fim nesses tempos de um sem número de câmeras à beira do campo? É por crer na amigabilidade dos atletas, em sua postura esportiva e cordial para com quem vê e disputa a partida. Seria o ideal, se existissem muitos indivíduos como o ícone da obra que o escritor norte-americano (que, por sinal, publicou esse livro já envolto da escuridão que culminou, poucos anos depois em sua morte). E não há.

É raro um Seedorf que trata a torcida, os companheiros e o clube com uma cordialidade nua, imaculada, sem interesses escusos. Que levanta a Liga dos Campeões e a Taça Guanabara com a mesma sinceridade. Não é apenas a inicial que evoca o protagonista de Hemingway – Clarence é tutor, é solidário e um pouco Santiago.

Há poucos com esses traços. Poucos que tornam os regulamentos válidos, que tomam um cartão amarelo indevido como o camisa 10 alvinegro recebeu (no segundo tempo, por uma simulação que não aconteceu, houve um encontrão justo) e são capazes de levantar e, no máximo, manifestar um sorriso de canto de boca. Ainda mais em tempos de brigas de torcida sem fim, de Kevins mortos com tiros no olho, com Brunos com um futuro de duas décadas de pena por um crime digno de Haniball Lecter, e de desencorajadas tentativas de tornar efetivamente pública a Copa e a Olimpíada dos próximos anos. Não é nada pessoal, mas é realmente difícil encontrar um Santiago por aí... 

                                                                                                     
Por Helcio Herbert Neto. 

domingo, 10 de março de 2013

Sem ela não tem graça


Foto: Nelson Almeida/France Press


Os relâmpagos incessantes no céu eram o prelúdio de mais uma tempestade de fim de tarde no nefasto verão carioca. O calor se fora e levara consigo a sobriedade daquela gente voraz que, em poucas horas, já não tinha mais o que beber nem comer. Precisaram de mais cerveja, e lá foram eles. Precisaram de novo, mas não tinham mais grana. Feito ratos bêbados, desbravaram os escombros da festa em busca de qualquer coisa etílica que os fizesse se sentir mais confortáveis com suas novas namoradas, mais felizes com o reencontro de amigos ou simplesmente mais alucinados para que algo interessante acontecesse. 

Contavam e recontavam histórias indecentes, riam alto, berravam os brindes e propunham brincadeiras que os deixassem em um nível ainda maior de satisfação. Aos poucos, começaram a sair para a rua e a ganhar as esquinas suadas e provocantes do Rio, afinal era sábado, e sábado todos precisam amar.

Alguém deve ter notado, porém, um cigarro se acendendo sozinho na penumbra de um canteiro distante. Ali, agonizava numa sobriedade invisível o ‘turista’. Suas largas veias circulavam um sangue de monotonia e desalento. Cada tragada que dava sugava suas energias para reagir às incertezas e sacanagens da vida. Não foi por falta de esforço, mas sim de uma alma que não conseguiu ficar bêbado. Teria sido feliz naquele sábado - como fora em tantos outros - se realmente estivesse ali presente. Ou se ao menos soubesse onde estava para se resgatar e, por fim, juntar-se mais uma vez àquela horda de hedonistas como sempre fizera. 

É provável que encontrasse a si mesmo numa estação rodoviária de Paris, exatamente na mesma posição que estivera há dois meses, chorando a pior despedida de sua vida. Depois disso, provavelmente não tenha se dado conta, mas foi só um espectro ansiando por novos lugares, pessoas e experiências. Quando voltou à rotina, aí sim; perdeu o norte de vez numa bússola que nunca foi de fato um exemplo de precisão. 

Agora não podem pedir a ele para gozar do jantar sozinho assistindo ao jornal ou do metrô lotado às sete da manhã. Não podem exigir que ele debata com entusiasmo ideias com a ‘esquerda caviar’, que precisa cuspir diamantes cada vez que abre a boca. Não podem aconselhá-lo a encontrar alívio entre pernas fúteis e sorrisos hipócritas. 

Doce ou salgado – não importa – tudo ficou amargo, como para a senhora que parou de fumar de um dia para o outro após 40 anos de vício. Cores, toques, gestos, palavras, nada é muito interessante. Sinestesia desolada, dias sem vida. 

Ele vai se alinhar - sempre o faz -, mas não desse jeito. Sem ela não tem graça.




Por Beto Passeri.