terça-feira, 25 de novembro de 2014

Ascese requerida

Não basta ser razoável. Não basta ser passional. Para a opinião pública, é necessário ser asceta. (Marcelo Sadio/Divulgação)

Fim de ano. Queixas infindáveis formam filas, talvez motivadas pelas contas que eclodirão em poucos dias, no começo do próximo exercício. Talvez pelo acúmulo de querelas, composto nos últimos, longos e sufocantes meses. Cansados de expor as críticas em redes sociais, multidões se aglutinam para submeter as reclamações em busca de repercussão. A procissão caminha rumo a um ente metafísico, poderosíssimo -- a opinião pública.

Talvez este espectro tenha, hoje, o vulto da Igreja no medievo. Ou o poder que os bigodes de Stalin tinham entre os soviéticos no século passado. A opinião pública é o símbolo maior da moral. É o centro de tudo, todos buscam a recepção e a repercussão. Para operar de forma eficiente, distribui-se em agências próximas, nas esquinas. Como as bancárias. E assim como os bancos, reúne fileiras infindáveis em certos (e recorrentes) eventos.

Entre os tantos que ali estavam naquele período perto das festas, havia um pacato cidadão. Como tantos, mas este requer um olhar especial. E não me refiro ao intenso monitoramento das câmeras de segurança. O figurão levava consigo uma calhamaço de papel, pesado e amassado. Reunia ali os argumentos sobre os quais desejava lançar luz. Não tinha a preferência dos atendimentos personalizados e teve que digerir a espessa manhã de espera.

Finalmente, chegou ao atendimento e entregou ao atarefado funcionário atrás do balcão. Este olhou os documentos e os encaminhou à comissão julgadora. Voltou vinte e três minutos depois.

"Infelizmente, suas reclamações foram indeferidas."

"Mas por quê? Todos os argumentos aí estão."

"Todas as reclamações não atenderam o mesmo critério. Tópico 66: ascese requerida", justificou o atendente, apontando para a lista de regras, presa na parede.

O homem que solicitava interpelou, na tentativa de solucionar o problema. Neste momento, uma lágrima rolou pelas suas costas. Embora o condicionador de ar estivesse ligado, o volume de gente consumia todo o frescor do aparelho, deixando na atmosfera somente o calor.

"Os doutos da opinião pública exigem ascese para aceitar reclamações. Veja o caso da sua primeira reivindicação: a fragilidade dos programas sociais do governo! Você quer que eles sejam expandidos", exemplificou, exaltado, o funcionário.

"E qual o problema?", questionou, pacato.

 "Você estudou a vida inteira em colégios particulares. Tem o carro lançado no ano passado. Passou longe de conviver fome", explicou o rapaz da agência. O moço balançou a cabeça, como que não entendendo nada do que vinha do outro lado da mesa.

"Você não pode pedir pelo que não te afeta. Não faz sentido. É incoerente. Seus argumentos são até cabíveis, mas você nunca viveu a miséria. Ninguém aceitaria", continuou o atendente.

"Eu tenho que militar na pobreza, pelo que você está falando."

"Não fale isso! A opinião pública odeia a palavra militância. Sua situação não é das piores. Só falta um documento. É só você voltar com o comprovante de dez anos de risco social."

"Tenho que morrer de fome para que aceitem essa reclamação como verossímil?", perguntou, incrédulo, o senhor. Foi respondido como impaciência.

"Meu caro, você faz o que quiser. Só com o comprovante o pessoal vai aceitar", cortou o funcionário.

"E quanto à outra queixa?", perguntou o requerente.

O jovem começou a folear a reclamação seguinte, com receio que o inquieto rapaz do outro do balcão visse os impropérios que a comissão havia rabiscado, com caneta vermelha, nas páginas do cuidadoso dossiê. Respirou fundo e sentenciou:

"Meu senhor, você reclama aqui dos resultados do seu time de futebol. Mas você não tem o cartão diamante de sócio-torcedor, só foi oito vezes ao estádio assistir aos jogos. E mesmo assim foi usando camisas muito antigas, da década passada. Não contribui com a renda do clube. Não sofre nem acompanha. Apuramos também que você não sabe quando o seu time foi bicampeão nacional. Novamente, portanto, tópico 66."

Faltaram-lhe palavras. Pensou em lembrar que, entre os argumentos, estava a corrupção dos dirigentes. Nos papéis, também justificava a baixa adesão dos torcedores com o aumento do valor dos ingressos. Descartou a tentativa de continuar reforçando a reclamação. A opinião pública é implacável. Antes de sair da fila, balbuciou que o clube era o maior amor de sua vida. Abalado, chegou em casa, ligou o computador e postou em uma rede social ambas as queixas. Duas pessoas curtiram: sua mãe, já idosa; e um amigo seu de colégio, que não via há décadas.

Ninguém comentou. Ninguém compartilhou. Os argumentos caíram no esquecimento.


Por Helcio Herbert Neto.   

    


sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Pedagogia do Oprimido e espetacularização da dor

Foto: Marcos Ribolli (Globoesporte.com)

















Em 1968, exilado em algum lugar do Chile, o educador e filósofo Paulo Freire escrevia as palavras "Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor", as mais famosas de sua obra-prima, "Pedagogia do Oprimido". Não me arrisco a resumi-la, pois seria tão simplista que beiraria à heresia. 

Ontem, na Arena do Grêmio, criou-se muita expectativa em torno de mais um péssimo jogo do Brasileirão. O motivo: o goleiro Aranha, do Santos, vítima de racismo por parte dos torcedores gremistas no último dia 28, voltava ao estádio após o episódio e a consequente exclusão do Grêmio da Copa do Brasil. 

Vaiaram o goleiro Aranha no momento em que ele entrou para o aquecimento, como sempre vaiam os goleiros adversários. Vaiaram o goleiro Aranha em cada tiro de meta e a cada segundo angustiante que ele permanecia com a bola nas mãos, como não se costuma fazer. Xingaram o goleiro Aranha de tudo que se pode imaginar, exceto ofensas que pudessem ser enquadradas como racistas - afinal todas as câmeras e microfones estavam virados para as arquibancadas à espera de um suspiro incriminador.

Eu não esperava um pedido de desculpas ou aplausos da torcida do Grêmio ao Aranha, mas esperava menos ainda essa reação carregada de ódio. Frequento estádios desde antes de conseguir andar por contra própria, e o faço até hoje, religiosamente. Sou um dos maiores críticos da atual "ditadura do politicamente correto" que tem infectado todas as esferas sociais, dentre elas - e principalmente - o futebol. Mas eu não acho que "no estádio vale tudo". Não sei qual é o limite, mas sei que a torcida do Grêmio o ultrapassou com bastante folga. 

Não acho - que me perdoe Paulo Freire - que o Aranha queira ser opressor. Nem perto disso. Mas é tratado como tal, e é isso que mais me espanta nessa história toda. O Aranha está pagando por ter sido vítima de racismo.  Está sendo vaiado por ter denunciado um ato criminoso, enquanto aquela jovem que você provavelmente já viu o rosto (o bode expiatório da mídia e da justiça), está chorando e pedindo desculpas em programas de auditório. Quero evitar o maniqueísmo, mas textos de gente grande circularam banalizando o assunto e eximindo a garota de culpa. Diversas vezes o goleiro foi questionado se ia ou não aceitar as desculpas e se aceitaria se encontrar com a tal garota. Como o próprio atleta definiu, "queriam um circo".

Quando Aranha deixou o campo e se dispôs a falar com a imprensa, falou com sobriedade e muita coerência, como tem feito desde o início do caso. Até que uma repórter insistiu em perguntar se "as vaias não eram normais e por que não eram normais". Aranha encarou a repórter por alguns segundos como quem respira paciência e respondeu: "Você sabe que não eram normais e sabe o porquê. Ou você acha isso normal? Acha normal? Que bom, ein?", e se dirigiu ao vestiário de cabeça baixa, enquanto a repórter sorria, pateta, como quem tenta descredenciar um lunático. 

Tenho medo.


Aqui está o vídeo da entrevista coletiva do goleiro Aranha.



Por Beto Passeri.







segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Eram só crianças

Eram só crianças
correndo sem rumo,
flanando sem pouso,
uivando pra Lua.

Eram só crianças
pobres crianças,
num parque tristonho,
espalhando areia
com pés feridos.

Eram só crianças
que não sabiam o dia,
que não sabiam o mês,
que muito pouco sabiam
além das grades.

Eram só crianças
invisíveis e famintas,
que viram uma bola
que as fez chorar.

Eram só crianças
por entre os carros,
nem tão invisíveis,
não mais famintas,
espalhando areia
e
sonhos
e
sorrisos.

Eram crianças
parando o trânsito,
calando buzinas
e
angustiando os grandes.

Eram crianças
com pés feridos
transformando a vida
e
mudando o mundo.





Por Beto Passeri.











sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Às vezes só resta o vazio

Não saberia, de modo algum, dizer quanto tempo teria permanecido desacordado não fosse aquele cutucão. Cutucão forte, apressado, de quem está perdendo a paciência numa tentativa vã de ressuscitar um semimorto. Trabalho cumprido, o estranho sumiu de vista. 

O único som que ouvia, além da preguiçosa batida do próprio coração, era uma voz feminina no português que não entendia. Mas entendia inglês e tinha bom senso, de modo que "final" "estação" e "obrigatório" foram a senha para que se levantasse contra a própria vontade.

Cambaleou não só uma, mas duas vezes antes de ganhar a plataforma completamente vazia. Respirou fundo para tomar consciência, mas a única sensação que teve foi de um machado atingindo em cheio seu crânio. Definitivamente, essa era uma ressaca daquelas. 

Olhou o relógio e nem teve forças para reagir: havia perdido o voo. Havia perdido o voo e precisava subir as escadas para ter alguma pista de onde estava e de qual seriam os seus próximos passos. Tudo, nesse momento, era complexo e delicado.

Cada degrau demandava uma eternidade, e em cada uma dessas eternidades estavam as lembranças de uma noite, um mês, uma Copa. Disseram que não haveria Copa. Que no Brasil as coisas estavam pegando fogo; que a política encobrira o futebol, que a empolgação dos brasileiros não resistira ao cansaço e que não haveria diversão. É bem possível que ele mesmo estivesse flutuando em outra realidade, mas, com seu olhar mais sincero e profundo, não foi isso que viveu. Houve Copa, houve muita Copa, Copa além do que poderia prever. 

E ia se recordando de uns beijos mal estalados, de uns sexos mal transados, de umas conversas atravessadas e de umas amizades que pareceram durar a vida toda. Brasileiros, franceses, ingleses, chilenos, italianos, colombianos, e - quem diria - até argentinos. Todos, ou quase todos, muito simpáticos, explodindo em uma alegria que política, entidade ou confederação nenhuma pode minguar ou tentar carregar os créditos. Uma felicidade plena, quase infantil. 

Finalmente chegara à superfície. O sol se espreguiçava, sonolento, por entre prédios velhos, enormes e pichados. Olhou para sua própria camisa branca manchada de sabe-se lá o quê. Sentiu um alívio tremendo ao lembrar que era campeão do mundo. Alívio que rapidamente foi desmanchado pela indiferença estampada no rosto dos transeuntes. Uma tensão tão grande que o ar poderia ser cortado com faca. Pessoas apressadas, exageradamente objetivas, sem escadas rolantes, sem tempo para sofrer. Como se nunca, nunca tivesse acontecido uma final de Copa do Mundo a alguns metros dali. 

Comprou uma água e sentou-se num banco qualquer na sombra. Em Berlim, em Munique, em Colônia, em Dresden e em todas as outras cidades as pessoas certamente enlouqueciam neste momento. Entristeceu-se. Horas depois todas estariam pegando o metrô, pensou, e esgotando esse assunto a caminho do trabalho, de modo que logo tudo estaria insuportavelmente ultrapassado e igual. 

Tomou um longo gole d'água até esvaziar a garrafa. Sentiu-se muito melhor. Estava a mesma merda de sempre. 

Às vezes - e, por Deus, são tantas - só resta o vazio.



Por Beto Passeri.







terça-feira, 12 de agosto de 2014

Luiz Antônio, favelas e preconceito social

O que muros sociais têm para mostrar. (Natasha Montier/Divulgação)

Para ouvir ao som de "O Homem na Estrada" - Racionais MC's

A estética urbana das favelas e periferias simboliza muito mais do que a sindrômica precariedade nas políticas públicas de habitação no Brasil. Para tantos, as periferias e comunidades carentes são sinônimo de violência e barbárie. Nas vielas e guetos, está escondido o crime, em sua plenitude, pensam eles. Tal relação entre as regiões que enfrentam maiores dificuldades e a criminalidade é uma conclusão automática na cabeça de grande parte das pessoas e esconde o mais vil preconceito social.

Algo parecido com isso (em menor escala, óbvio) acontece quando se fala em Flamengo. As associações recentes entre atletas rubro-negros e narcotraficantes mecanizam ainda mais essas conclusões. O caráter popular do time da Gávea também. Luiz Antônio, volante do elenco do clube carioca, é investigado por relação com grupos paramilitares que controlavam um condomínio do programa Minha Casa, Minha Vida, do Governo Federal, na zona oeste do Rio. Mais uma comprovação para uma conclusão dos simplistas.

Em ambos ambientes -- o time de maior torcida do país e as áreas menos abastadas --, sobrevoa o mesmo mal: o abandono. A favela sofre com o ostensivo contato com um tentáculo do Estado, a Polícia. Militarismo e clima de guerra estão presentes, enquanto educação, moradia e saúde são escassas. A ignorância por parte do Poder Público e da maior parte da abastada sociedade civil gera um ambiente propício para a proliferação de violações. Vale ressaltar, embora a maioria seja de pessoas honestas nas periferias.

Existe uma condescendência muito grande, por parte das autoridades, com as direções dos grandes clubes brasileiros. Isso resulta na presença de personalidades de idoneidade duvidosa na administração das entidades e em grandes dívidas com o tesouro público. Andrés Sanchez, ex-presidente do também popular Corinthians, revelou-se, recentemente, foi acusado pelo Ministério Público Federal por sonegar impostos. Aliás, Andrés tenta se eleger deputado federal em outubro.

A negligência é reproduzida dentro do clube, também com jogadores e comissão técnica. A espiral de ignorância multiplica casos como o de Luiz Antônio. A condição social com a qual o jogador conviveu na vida inteira também o torna mais suscetível a essa convivência com milicianos, traficantes, policiais, políticos e empresários corruptos e corruptores. A estética da comunidade e a confusão turbulência interna no Flamengo, portanto, denotam o abandono e o retrocesso, além de escancarar o preconceito.

Por Helcio Herbert Neto.                                      


domingo, 10 de agosto de 2014

Vã rivalidade

Mais uma guerra que interessa o estabilishment do futebol (Divulgação) 

O que aconteceu na tarde do Dia dos Pais de 2014, dentro Maracanã, foi mais um capítulo obscuro da recente rivalidade entre Flamengo e Sport. Ambos, trajando vermelho e preto (no caso da partida válida pelo Brasileirão, o time do Recife usou, excepcionalmente, branco) seguidos por multidões e colecionadores de títulos. O pernambucano só tem um nacional. E é aqui começa a oposição entre os dois clubes. Em 1987, Zé Carlos; Jorginho, Leandro, Edinho, Leonardo; Aílton, Andrade e Zico; Bebeto, Renato Gaúcho e Zinho foram campeões da Copa União. 

A escalação é um mantra quase tão presente na memória rubro-negra quanto o time campeão mundial de 1981. O torneio nacional foi organizado por uma incipiente liga de clubes -- o Clube dos 13. A dissidência dos principais emblemas brasileiros ocorreu após a Confederação Brasileira de Futebol decretar que não teria condições financeiras de conduzir o principal campeonato do país naquele ano. É importante lembrar desse último ponto. O Sport, por sua vez, ganhou uma espécie de segunda divisão naquele mesmo ano. Vale lembrar que a Copa União não seguiu a ordem classificatória do ano anterior, em gesto arbitrário. 

No entanto, na tentativa de cooptar a iniciativa de vanguarda, a CBF exigiu que os dois campeões se confrontassem. O Flamengo se negou e fez-se esse nó. Ricardo Teixeira, presidente da entidade máxima do futebol brasileiro, que assumiu em 1989, tomou para si a tarefa de prolongar o máximo a briga e usar a libertária independência daquela Copa União como símbolo maior da necessidade de prestar reverência aos cartolas das federações e da própria confederação. Ousados serão punidos. Um dos (tantos) legados malditos de Teixeira foi conseguir a implosão definitiva da Clube dos 13, ao fim de sua administração.

Para incentivar o ódio, por parte dos pernambucanos, foi evocado o discurso contra o Sul Maravilha, eixo Rio-São Paulo que, é bem verdade, peca com tanta frequência por um elitismo, típico no Leblon e na Avenida Brigadeiro Faria Lima. Usou-se também uma tal taça das bolinhas, em um drama tão desnecessário e longo que nem vale citação neste quinhão virtual. Portanto, é uma incoerência fantasmagórica defender, por exemplo, as reformas no calendário ou a criação de uma liga independente dos clubes brasileiros se, ao mesmo tempo, é levantada a bandeira que proclama o Sport como o vencedor de 1987.

Para quem se interessa pelo debate, vale assistir ao documentário "Copa União".

Por Helcio Herbert Neto.                                                       

  

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Eterno retorno

Tudo volta. Se houver trabalho, será possível encantar novamente. (divulgação/Governo do Estado do Rio)

Para ouvir ao som de Bat Macumba - Os Mutantes

Somente quando onze senadores trajando ternos sofreram a pior derrota do esporte brasileiro que foi possível enxergar a aurora de novos dias, da glória. Foi diante de uma multidão que representava 10% da população do Distrito Federal e de juras de que nunca mais o brasileiro poderia ser grande, que o destino mesmo era ver os grandes do norte brilhar. Foi há muito tempo. Tanto que todos já esqueceram.

Sessenta e quatro anos quase exatos. A metáfora que compara os jogadores da Seleção Brasileira aos políticos foi publicada na imprensa após a vitória do Uruguai em 1950, na primeira Copa do Mundo realizada em território nacional. Na época, o time de Zizinho, Ademir e Jair tinha a responsabilidade de fincar no seio do Brasil o futebol como elemento da identidade do país. Uma nação ainda sem muita cara, que começava a se urbanizar e que punha nas costas dos jogadores o peso de mostrar quem era essa nação.

Dessa vez, em 2014, o fardo vinha das ruas. As manifestações de 2013 serviram de incentivo para a vitória na Copa das Confederações. A geração que mergulhou nos protestos e fez uma lista de reivindicações teve representação nos gramados da competição-teste para a Copa. No ano seguinte, isso não foi suficiente para a conquista do Mundial. Durante a preparação,a defasagem do futebol praticado aqui foi escondida pela figura de um técnico carismático, pouco atualizado. 

De súbito, esqueceu-se que, na história, os treinadores nunca foram os personagens principais da Seleção. Talvez o detentor do maior brilho tenha sido Felipão, o mesmo que tomou sete gols contra a Alemanha. Scolari também liderava o Brasil quando este venceu os germânicos na final da Copa de 2002. Derrocada dos tricampeões desencadeou uma série de transformações estruturais no futebol alemão. Pouco mais de 12 anos, aqui estavam eles, erguendo a taça do mundo.

Outros sinais do eterno retorno do futebol, esporádicos, apareceram durante o segundo Mundial em solo brasileiro. Júlio César, questionado, saiu da Copa imaculado. Os erros de 2010 se desmancharam na memória quando o goleiro foi herói na disputa dos pênaltis contra os chilenos. Sim, a mesma seleção que o time de Dunga teve que enfrentar nas oitavas da competição na África do Sul. Neymar parou de brilhar em 2014 por problemas graves de saúde, assim como Ronaldo em 1998. A idade de ambos: 22 anos.

Podem ser coincidências. Isso sempre é possível. Esse será o argumento de oportunistas, que bradam o apocalipse do futebol brasileiro. A última passagem recorrente no histórico da Seleção Brasileira é quase final na discussão com os que, para arrebatar a audiência, dizem que esse esporte nunca mais terá o Brasil como ícone transnacional: é tradicional, após grandes traumas há o ressurgimento.

Foi assim após a batalha campal entre brasileiros e húngaros, em 1954, depois das discussões sobre a divisão dos prêmios dentro do time de Sebastião Lazaroni, em 1990, e na sequência da derrocada diante dos franceses, em 1998. Para destilar a frustração, todavia, é preciso trabalhar.

por Helcio Herbert Neto.                                           


quinta-feira, 19 de junho de 2014

Eu sempre preferi a 5, o coração

Foto: Lance!press









Não sei se estava no meu DNA ou se aconteceu por circunstâncias alheias à minha vontade, mas eu sempre preferi a camisa 5. Claro que, quando se é criança, parece mais divertido driblar o time inteiro e colocar a bola na rede; você é "o cara", você é o Ronaldinho, o Ronaldo, o Messi dos campinhos discretos transformados em estádios lotados pela fértil imaginação infantil. As pessoas ficam de pé quando você pega na bola, você estampa as capas de revistas, as manchetes de jornais, os jogos de videogame e tudo mais.

Ninguém sonha com um carrinho bem dado e uma saída de jogo decente, sem grandes invenções. Eu demorei um pouco a aceitar, mas eu gostava desses caras. Os caras que são um pouco os "vilões" do futebol. Que quase sempre precisam dispensar sorrisos e boas maneiras para serem respeitados. Que, assim como os goleiros, destroem as mais belas criações. Que têm que correr o dobro e jogar dez vezes mais para serem aplaudidos. Homens que já foram acusados de não jogarem nada e que ganharam partidas e títulos com cusparadas e pisões nos calcanhares (os politicamente corretos se contorcem). Muitas vezes são os capitães, líderes de grupo e responsáveis até mesmo por frear o alto nível de gracinha dos craques do próprio time. 

Gosto do futebol marginalizado e passional, como ele é em sua essência. Sou apaixonado pela Libertadores e apenas mais um espectador da Champions League. Muito disso é pura fantasia, mas acontece que sou completamente maniqueísta nesse sentido. Quase sempre vejo os ricos e badalados como "o mau" a ser vencido, na base da superação, pelos mais fracos e desacreditados - o "bem". Um clichê que nunca morre. 

Nem sempre é possível fazer essa distinção tão claramente, mas aqui, na Copa do Mundo no Brasil, eu tomei meus partidos. Pode ser que essa Copa não seja a Copa das Américas, como andam dizendo, mas uma linda história já foi escrita ontem com a vitória do Chile que eliminou a Espanha. Hoje, uma não tão significativa, porém não menos importante com o Uruguai derrotando a Inglaterra.

A Inglaterra, que inventou o futebol, fez cara feia para jogar no calor de Manaus. Perdeu para a Itália. Hoje, num clima londrino em São Paulo, também foi derrotada. Derrotada pelo talento de Suárez, mas principalmente pela entrega dos uruguaios, que não perderam uma dividida. Os mimados meninos da Rainha precisam comer muito mais grama do que isso.

A Espanha, que "reinventou" o esporte bretão com o seu insuportável Tiki-Taka, levou um verdadeiro baile do Chile, que também não perdeu uma dividida. Apatia, salto alto ou fim de uma Era - pouco importa. Os chilenos não tinham nada com isso e precisavam revidar trezentos anos de exploração e a recente apropriação do apelido "La Roja" (veja aqui o vídeo). Foi uma das vitórias mais bonitas que me lembro em Copas do Mundo.

Tirando Itália e Alemanha, que são clássicas, torço contra qualquer europeu. Sobretudo depois desses anos negros em que decidiram que espanhóis jogavam mais futebol que todo mundo. Agora a Espanha ficará mais uns cem anos sem ganhar nada e os coxinhas precisarão achar outra "escola" para admirar; quem sabe a Bélgica seja a próxima.

Como disse ontem no bar a um chileno emocionado com a vitória sobre a Espanha, 'enquanto não devolverem nossa prata e nosso ouro, continuarão apanhando na América'.



Por Roberto Passeri.













Garra charrúa

Historicamente, não é a simples habilidade que diferencia os uruguaios (twitter oficial da Associação Uruguaia de Futebol)

Não vi Obdúlio Varela. A mitologia do futebol conta que, após a vitória do Uruguai na final da Copa do Mundo de 1950, o capitão da Celeste foi às ruas do Rio e se espantou com a reação dos brasileiros. O sofrimento de uma nação inteira fez com que ele se sensibilizasse e chegasse até a dizer que, se soubesse da dimensão da dor do povo amigo, não levantaria a taça. 

Continuou companheiro de Zizinho, Ademir e dos outros derrotados por toda a vida. Entretanto, eu vi Luís. Luís enfermo, que dias atrás estava na cadeira de rodas. Suarez companheiro de time de Philipe Coutinho, melhor brasileiro da temporada europeia que poderia ser uma alternativa para o Brasil, caso Felipão o tivesse convocado para a Copa do Mundo.

Um homem capaz de reviver a garra charrúa, o espírito dos índios que ocupavam o território que hoje é da população Uruguaia. Diferentemente dos outros latino-americanos campeões mundiais, na mística celeste não é a habilidade -- ou o futebol arte -- que os faz diferentes dos demais. É o coração. Um exemplo: não há meias de relevância na equipe uruguaia que joga o campeonato do mundo no Brasil. 

Com o avanço da idade de Diego Forlán, a armação tática de 2010 não pôde ser revivida.Tampouco existe um virtuoso, hábil e faceiro como Neymar, camisa 10 da seleção da casa, ou como Messi, craque da vizinha Argentina. O que ocorreu na segunda rodada da primeira fase da Copa no Brasil em campo foi um exemplo de força, gana e vontade de vencer. Virtudes típicas do futebol uruguaio.

Embora a Inglaterra tenha feito um bom jogo, foi para Luís Suarez que os brasileiros escolheram torcer nesta tarde fria em grande parte do centro-sul do país-sede. Como em 1950, existe condescendência. Nos sensibilizamos com a superação do maior nome do Uruguai. Ao sair do estádio do Corinthians, em São Paulo, os torcedores e jogadores uruguaios foram recebidos com a irmandade de um rival em potencial. Assim também fez Obdúlio, na primeira Copa disputada em solo verde e amarelo. 

Por Helcio Herbert Neto.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Verdades subterâneas




João Saldanha assumiu o comando técnico do Botafogo no fim da década de 1950. Portanto, há mais de 50 anos. Depois de todo esse tempo, algumas das constatações do treinador e jornalista podem estar obsoletas -- pensaria um desavisado. Nada de substancial mudou no futebol: as regras, as hierarquias e a corrupção moral são as mesmas da época que as ideias do pensador de vanguarda do futebol treinava uma das maiores equipes de todos os tempos.

Em "Os Subterrâneos do Futebol", João Sem Medo escancara a rotina de uma concentração e, a partir do convívio com Didi, Garrincha, Nilton Santos, Paulo Valentim, Amarildo e outros jogadores, mostra as hipocrisias e banalidades que circunscrevem todo o universo do futebol. Os preconceitos desses ambientes estão ali naquelas páginas, desnudos.

Entre os diagnósticos mais precisos do Saldanha está a importância da cultura afrodescendentes para o esporte do povo. De acordo com o técnico, a presença de negros é imprescindível para o futebol. Nos campos e nas arquibancadas, eles são o início do processo de popularização do jogo e o meio pelo qual as competições, atletas e instituições ganharam importância mitológica.

Já não há mulatos e negros nas plateias bacantes do nosso jogo como antes. Nem numericamente, nem simbolicamente. Uma lástima. Também não haverá representação da cultura afrodescendente durante a Copa. A flexibilidade das concentrações também é um dos panfletos distribuídos pelas linhas do livro. Com certeza João Saldanha aprovaria a decisão de liberar Oscar para visitar o filho recém-nascido, tomada por Felipão.

Mesmo com a visita das editoras aos arquivos em busca de títulos de futebol, "Os Subterrâneos do Futebol" não foi reeditado recentemente. Talvez, nem hoje em dia, sejamos capazes de digerir o intragável João Sem Medo. Contudo, vale a leitura. Busque nos sebos, aconselho.

Por Helcio Herbert Neto.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Aos derrotados



 Para quem perde, a Copa do Mundo também é inesquecível. (site oficial do Atlético de Madrid)

 

Para ouvir ao som de Beck - Loser

Toca uma música batida. De cima, chegam os outros barulhos que vão ficar na memória daqueles que não conseguiram ascender ao Olimpo dos vencedores. A presença das autoridades ronda os outros, os que alcançaram. Os poderosos negligenciam quem vem do lado oposto, cabisbaixo, após ter tentado – ou não – tudo o que era possível. Bem como a multidão, que ignorará aqueles homens em todos os dias a partir de agora.

Geralmente é “We are the Champions”, do Queen, a canção que serve de tema para o sofrimento inicial dos derrotados. Não é uma música fraca, pelo contrário. Por ser tão repetida, contudo, tornou-se enfadonha. É reproduzida nas finais de quase todos os campeonatos do mundo. Muitas vezes, em mais de uma competição do mesmo país em uma só temporada.

E é o começo da dor do time derrotado. O vencedor nem nota. É a hora do êxtase, do prazer supremo que é consequência de um esforço de anos, décadas. Dedicação parecida com a apresentada pelos oponentes, que nunca serão reverenciados. Seria assim com o Atlético de Madri, caso eles não tivessem erguido o troféu nacional na Espanha.

Aconteceu com a Alemanha de 2002. Desafio quem, por distração ou falta do que fazer, veio parar nesse texto, elencar cinco jogadores germânicos que estavam em campo quando o time brasileiro ganhou a Copa. Como todos os vice-campeões, até a véspera da decisão do mundial, eles tinham os mesmos méritos que aqueles que entraram para o panteão ícones do esporte. Hoje, estão distantes da recordação.

Em vez dos tapinhas nos ombros, eles encararão o escárnio ou a pena, todos os dias, das pessoas que por sorte ou azar os encontrarem nas ruas. No mínimo, um sorriso no canto de boca. Barbosa, goleiro da Seleção de 1950 sabia disso. Zico, o personagem que perdeu um pênalti contra a França, em 1986, e não conseguiu empatar o jogo contra a Itália, 1982, também deve saber o quanto dura essa chaga.

Isso para ficar somente com os casos brasileiros. Daqui a menos de uma semana, começa talvez a maior celebração dos derrotados do esporte. Diferentemente da Olimpíada, único evento do tamanho da Copa, somente uma equipe representando uma nação conseguirá o ópio da vitória diante da cobertura midiática do mundo inteiro.

Alguém já disse que o futebol é a coisa mais importante entre as menos importantes da vida. Confesso que não sei a identidade do autor. Posso, entretanto, concluir que ele tem a perfeita dimensão de um derrotado: porque somente quem foi vencido nos campos tem a ideia de como é difícil conviver com a certeza de uma meta agora inalcançável – com o ar sufocante da derrota.

Por Helcio Herbert Neto.

domingo, 25 de maio de 2014

Obrigado, Simeone

Foto: ACTION IMAGES


Respeito, mas não entendo como pessoas que gostam mesmo de futebol puderam torcer ontem para o Real Madrid. Se há uma possibilidade tão clara de título improvável, que reverte todas as expectativas do mundo da bola e abala os paradigmas do esporte bretão, por que diabos você vai torcer pelo óbvio? Justiça? Quem torce por justiça, não torce pelo futebol. Se você quer que o melhor vença, assista basquete. Sobretudo quando se trata de um duelo tão definido entre ricos, famosos e perfumados - representados por Cristiano Ronaldo - contra "pobres" (sim, perto dos outros elencos eles são miseráveis), sem grife e suados - liderados por Diego Simeone, um dos sujeitos mais cruéis e catimbeiros que vi jogar e, hoje, um técnico pra quem todos têm que bater palmas de pé.

Que me desculpe o Rica Perrone (e outros), que diz que o Atlético não joga futebol e que o Simeone é uma "invenção" da mídia. O Atlético não só joga futebol, como tira ele não sei de onde. Não que o time colchonero não seja bom, longe disso, mas ninguém ali é craque, e o que era para ser apenas um time chato desbancou a hegemonia de cifras astronômicas de Barcelona e Real no Campeonato Espanhol e, por 120 segundos, não dominou a Europa  por completo.

Simeone tirou leite de pedra; fez todos acreditarem que eram melhores do que realmente eram, comprou briga com árbitros, pediu apoio da torcida, xingou o preparador físico, o médico, o roupeiro e, enfim, fez do Atlético um time de Libertadores disputando a Champions League. Jogando 150% por jogo, porque se fosse só 120% não daria para chegar tão longe pela diferença técnica para os gigantes europeus. Faca entre os dentes 90 minutos por vez, derrubando um a um. E derrubando o mais poderoso deles, o Real Madrid, até dois minutos do fim, quando Sérgio Ramos acertou uma cabeçada milagrosa e empatou a partida, salvando Casillas e Cristiano Ronaldo de suas atuações pífias. Ali o Atlético entregou os pontos. O cansaço emocional se juntou ao físico, e o esgotamento completo do time de Simeone fez com que a prorrogação parecesse fim de pelada, culminando num injusto 4 a 1 para os merengues.

Fiquei triste, órfão da surpresa, sem assistir Davi derrotar Golias no Estádio da Luz. Faz parte. Foi épico do jeito que foi, e sempre que vejo o replay em câmera lenta do Sérgio Ramos subindo para a cabeçada eu fico pensando que deve haver explicações metafísicas para um movimento tão perfeito àquela altura do campeonato. A bola entrando a poucos centímetros da trave e poucos centímetros também da luva do goleiro Courtois. E tudo muda. Futebol...

De qualquer modo é interessante que, por dois anos seguidos, dois dos quatro finalistas da Champions tenham sido zebras com muito menos poder financeiro que os outros clubes. No campeonato de maior pompa do mundo, Borussia Dortmund e Atlético de Madrid provaram que suor e alma em campo ainda fazem diferença. E que o dinheiro compra quase, mas não tudo.


Por Roberto Passeri.





terça-feira, 13 de maio de 2014

Não existe processo

Jayme foi humilhado por uma diretoria retrógrada. (Gilvan de Souza/Facebook do Flamengo)


Há quem defenda bandeiras erradas por puro desconhecimento. Natural, diante da superficialidade desses dias. O que mais espanta são os informados, inteligentes e interessados, que vestem camisas, entram em confrarias e discutem em nome de mentiras. Enxergam em eventos esporádicos ou até em simples ato processos elaborados, inexoráveis.

O Flamengo reviu suas contas. Conseguiu pagar as dívidas que tinha com os cofres públicos, para ter acesso ao patrocínio. Só. Há quem garanta que parou de fazer contratações irracionais -- à revelia da presença no elenco de um desinteressado André Santos e de um tal Carlos Eduardo (lembra dele?). De resto, houve discurso. Adesão de grandes executivos de empresas impressionaram também e fez a atual cúpula gestora encarnar a velha promessa de novo mundo que vem pelas privatizações.

Traço sem continuidade, longe de compor o processo de modernização, bradado aos quatro ventos pelos cartolas e por outros, que só reproduziram as bravatas, sem refletir. Para aprovar os balanços dos últimos três anos, Patrícia Amorim e Bandeira de Mello se uniram. Nada que é progressista se junta com a ex-presidente do Flamengo, capaz de expulsar Zico de sua casa. Como se fosse lixo.

O pacto de não-agressão foi a condição para que as contas fossem aprovadas. Ambos os lados, situação e oposição, celebram o retrocesso. Ninguém investigará os possíveis investimentos escusos de Patrícia. Provavelmente, ninguém mergulhará em futuros desmandos da atual diretoria. E eis que o Flamengo despeja Jayme de Almeida, ignora o milagre operado na última Copa do Brasil e negligencia o rendimento de 62% que o treinador conseguiu com um elenco limitadíssimo em sua passagem.

Vem Ney Franco, o mesmo que sucedeu o trabalho de Waldemar Lemos, que colocou o Rubro-negro na final da Copa do Brasil em 2006 e também foi escorraçado. Jayme foi demitido por telefone, em seu dia de folga. O avanço que a gestão de Bap, Bandeira e Wallim mostrou-se pontual, tecnocrático. O Flamengo não virará uma potência porque falta caráter. O clube da Gávea é o mesmo de sempre, infelizmente.





Por Helcio Herbert Neto.