quarta-feira, 29 de abril de 2015

Os Blues valeram a pena

Vasco e Botafogo fazem a finalíssima no Rio: aproveitemos o que há de bom nos regionais (Marcelo Sadio/Divulgação)

Para ouvir ao som de: Chico Buarque - Essa Pequena

Nas últimas eleições, deu-se o ocaso de Chico Buarque. Você não foi convidado para o enterro. Tampouco os parentes do compositor. Nenhum tabelião avalizou uma certidão de óbito. No entanto, parágrafos e parágrafos na imprensa sentenciaram que o filho de Sérgio Buarque de Hollanda estava inapto, senil. Tudo isso por seu posicionamento político.

Não julguemos, aqui, a visão do cantor ante o que acontece entre os mais poderosos brasileiros; que teçam argumentos ou espumem ódio em outro canto. Sem dúvida: presente é a vivacidade da verve do artista. No ano que encomendaram o ataúde do Chico, o autor lança o incensado livro “Irmão Alemão”, reconhecido como um dos melhores entre as quatro estações de 2014.

Pouco antes, em 2011, Chico Buarque entrou em turnê para divulgar o disco “Na Carreira” (o título é uma resposta antecipada aos que decretaram a falência do compositor?). Há, entre aquelas faixas, uma inédita capaz de decodificar tanto uma expectativa das arquibancadas como uma ética da própria produção do músico.

“Essa Pequena” não tem a poética incisiva de “Construção” ou a ironia ferina de “Deus lhe Pague”. Ocorre ali a descrição de um amor que, mesmo diante da diferença de idade, acontece da maneira mais contundente. Embora não haja a perspectiva de dezenas de anos de convivência, ocorre a felicidade, a cada segundo, em plenitude.

Chico aproveita o futebol, como praticante e torcedor. Embora os campeonatos regionais tenham sido difíceis, ocorreu uma interessante cizânia entre o Fluminense do poeta, o Flamengo, a Federação Fluminense e, por conseguinte, a CBF. Desse embate, pode sair um ensejo de liberdade para os clubes, quem sabe a liga independente?, uma coesão entre grandes times...  

Escassearam os momentos de grande futebol: que sejam curtidos os lampejos de felicidade nesse esporte. Agora, quer saber quem vai ganhar, Botafogo ou Vasco? Que vença o mais competente. Os blues já valeram a pena.

Por Helcio Herbert Neto.

sábado, 21 de março de 2015

Há vinte anos, Darcy apontava para o bom senso

O antropólogo não se perdoa por ter acabado com os campinhos de futebol (reprodução/Youtube).

Darcy Ribeiro militou junto aos estudantes, aos índios e aos movimentos sociais. Embora tenha sofrido pujantes derrotas ao longo de sua jornada - integrava, inclusive, o governo João Goular derrubado pelo golpe de 1964 -, são muitos os seus legados; o Sambódromo e a Universidade Estadual do Norte Fluminense são resultados sólidos, irrevogáveis de sua atuação.

O professor, antropólogo e político, contudo, reconhecia um grande erro para com um símbolo da brasilidade. Em entrevista concedida ao Roda Viva em 1995 (para assistir, aqui), ele lamentou ter destruído dezenas campos de futebol para a construção dos CIEPs. O maior programa educacional da história do Brasil tinha como objetivo implementar a educação integral do Rio, na década 1980.

Devido à escassez de áreas para as escolas, à época, o governo de Leonel Brizola e Darcy Ribeiro cometeu tal equívoco. A autocrítica, realizada em rede nacional de TV, seguiu negligenciada pelos políticos por essas duas décadas. O esporte não foi o foco de políticas públicas efetivas nas esferas municipal, estadual e federal. Até uma Copa do Mundo passou e o erro foi reiterado. 

Dilma Rousseff fez parte do partido de Brizola e Darcy, o PDT. Quatro anos após sua chegada à presidência, ela parece ter sido tomada, de súbito, pelas recordações dos ensinamentos do dirigente de sua antiga sigla. A lei de responsabilidade fiscal no esporte é um aceno para uma perspectiva de mais políticas públicas para as práticas esportivas durante o segundo mandato da presidenta.

O esforço para a elaboração da medida provisória, anunciada nesta semana, ainda mostra uma tentativa de começar a compreender o esporte em sua plenitude, como fenômeno econômico, social, cultural e educacional. Com o texto em vigor, clubes terão de honrar compromissos trabalhistas e fiscais. A ideia é que eles deixem de ser maus exemplos para os seus torcedores.

É bem verdade que, entre a lamentação do então senador, na TV Cultura, e o tenso atual momento da presidenta foram sancionados o Estatuto do Torcedor e a lei Pelé. Muito pouco, para tanto tempo. Os pontos da MP foram articulados entre Casa Civil e o Bom Senso FC, associação de jogadores de futebol pelo bem do esporte. O grupo foi recebido no gabinete de Dilma antes das eleições de 2014.

Diferentemente de outras promessas voltadas para os setores sociais que catapultaram a petista para um segundo quadriênio em Brasília, essa foi escutada. O texto ainda passará pelo Congresso, o que deve ser temido, ante os embates entre Executivo e Legislativo. A cúpula da presidência deve fazer o máximo esforço para que as novas determinações não sejam engavetadas.

A medida provisória é importante para confirmar as origens políticas de Dilma, postas de lado no primeiro trimestre de 2015. A legislação será um legado do atual governo, positivo como os do professor Darcy Ribeiro. Também comprovará que a presidenta não ignorou, como tantos outros, a autocrítica do etnólogo dirigente pedetista.



Por Helcio Herbert Neto.                                                  

quinta-feira, 19 de março de 2015

Decidi jogar bola

Em 1964, a maioria pensou que a permanência dos militares seria efêmera. (Agência Brasil)


Pleno domingo. O barulho vinha das panelas, não de arquibancadas. A multidão caminhava nas ruas e não tinha como destino final o estádio. O adversário não nutria respeito algum para com o oponente. Em vez de abnegação, foco e raça, era o ódio o sentimento que corria pelas veias das gentes que marchavam em vias públicas no Brasil. Não havia, ali, nenhuma demonstração de aceno para conciliação e para compreendimento.

Precisava ser assertivo. Tomar partido, diante daquele transe coletivo. Nunca desfilaria acompanhado de Jair Bolsonaro, Coronel telhada, seus iguais, seus ideais. Embora o atual governo pratique políticas indefensáveis. Apesar de também haver reivindicações válidas por entre os cartazes. Nunca gastaria sola de sapato na saliva ácida de viúvas de uma Ditadura Militar que deixou 434 mortos e desaparecidos. Mau fui capaz de fatigar minhas retinas com a cobertura - ou apologia? - na TV.

Aquela cólera toda acabava por me combalir. Intervenção militar, ir à Cuba, impeachment. As críticas sem profundidade endereçadas aos manifestantes, de forma geral, também não me apaziguavam. O rubor que a tensão causava era um mau a ser expurgado, democraticamente. Era preciso vomitar aquela bílis. E a cerimônia tinha que acontecer no mesmo domingo, dia 15: dia do "Eu vou" - ou do "Não Vou".

Decidi, portanto, jogar futebol. Puxava o ar, partia em corrida, com ambição lacerdista. Ao perder a bola, vociferava impropérios udenistas. Quando me encontrava cercado pela marcação, tinha segundos de exílio, incomparáveis aos anos de sombras pelos quais passaram líderes sociais e políticos até a anistia e a reabertura. Tendo o placar sido alterado ao nosso favor, curtia instantes da cena na qual os adversários "sangravam", verbo usado, inapropriadamente, por Aloysio Nunes, às vésperas do protesto.   

Quando levava um corte ou errava na marcação, suspirava á la janguistas. Ao recuperar a bola e partir para o contra-ataque, exibia um peito inflado e a certeza no sucesso dos prestistas. Para delimitar (extremas) fronteiras, vale ressaltar que tudo foi feito sob a cadeia da legalidade. Diferentemente de militares e da UDN de ontem. Deferentemente de alguns golpistas travestidos de liberais dos dias de hoje. Uma coisa correr atrás da bola ensina: para haver jogo, é necessário quórum e adversário. Não nos cabe liquidar, trucidar, eliminar concorrentes.


Por Helcio Herbert Neto.                                                                 

terça-feira, 10 de março de 2015

Avelinos e Marinhos

A história de Avelino é rememorada por Daniel Aarão Reis no livro "Luís Carlos Prestes - Um revolucionário entre dois mundos". (Reprodução)

As recordações de símbolos populares se esvaecem, de maneira geral, entre os habitantes do território brasileiro. Principalmente fatos e versões ocorridos longe do Centro-Sul. Heróis de outrora ficam renegados aos livros empoeirados ou aos distantes círculos acadêmicos. Quando muito, movimentos, personagens e datas marcantes ganham uma medalha de honra ao mérito; entram em placas de nomes de rua, viram praças, mas não são revividos pelas gentes concidadãs.

Avelino Clementino de Barros. O nome não é reconhecido pela maioria da população brasileira. Ajuda pouco no ato de rememorar se for recordada sua profissão: músico, de um regimento de infantaria de Natal. No entanto, Avelino foi preponderante no levante de novembro  de 1935, um episódio marcante da República. Na década de 1930, apesar da esperança motivada pela chegada de Vargas à presidência, muitas das reivindicações populares ainda eram negligenciadas.

Para agravar a situação, o presidente pôs em vigor a Lei de Segurança Nacional, que intensificou a repressão aos opositores do regime. O quadro de ebulição culminou na insurreição capitaneada por Avelino, em Natal. Posteriormente, Luís Carlos Prestes e o Partido Comunista evocaram as rédeas do movimento, fazendo eclodir rebeliões também no Rio de Janeiro. Nome mais imponente no cenário político nacional, Prestes ficou reconhecido como o líder daquela que ficou conhecida como a Intentona Comunista.

Sem a atitude de Avelino, contudo, as reivindicações não teriam voz. Entre tantas atribuições, cabe também ao jornalismo, mais especificamente aos repórteres, trazer à luz essas histórias. E, nessa tarefa, não há restrições de editorias: existem instantes decisivos na Economia, na Cultura, na Política, na Cidade, no Esporte. Muitas vezes, os personagens são próximos e acessíveis, embora negligenciados. Como o músico de Natal, capaz de mobilizar insurretos.

É em busca de tal resgate que o livro "A Bruxa e as vidas de Marinho Chagas" se projeta. Figura muito presente da mesma Natal de Avelino, a proximidade do ex-lateral da Seleção Brasileira acabou sendo naturalizada, quase vulgarizada. A reação de quem ficava perto do antigo atleta do Botafogo tinha relação com os rumos que Marinho tomara durante as últimas décadas de sua vida. Por mostrar os becos onde o jogador se meteu, a obra é um mergulho na sombria vida dos ex-atletas.

A decadência dos últimos dias, contudo, não faz por desmerecer o trabalho de elucidação das glórias de Marinho Chagas. A fugaz ascensão no futebol nordestino, as inebriantes jogadas ofensivas do suposto defensor, e o reconhecimento internacional pelo atrevimento estão presentes, ao longo das páginas do livro. Ali também estão outras tantas passagens escondidas: a reverência de Bob Marley ao jogador, durante uma turnê do Náutico na América Central, figura entre as mais divertidas.

Embora incomparáveis em amplitude, ambos os casos suscitaram empatia dos potiguares. Em suas respectivas áreas, Avelino e Marinho foram importantes para a vida da capital do Rio Grande do Norte. Em um momento político em que parcela da sociedade brasileira questiona a participação política e social de nordestinos e suas opções eleitorais, é necessário que as jornadas épicas do atrevido atleta e do obstinado militante voltem à tona, rebatendo históricos preconceitos.
Por Helcio Herbert Neto.                                                                 
   

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Entre o céu e o inferno



Não corre, por entre a gente cubana, rios de leite e mel. Nem mesmo um messias de vastas barbas seria capaz de transformar aquele rincón em um Eldorado. Faltam recursos naturais e ocorre, no histórico da ilha, uma reincidência nefanda de barbáries e da gana de atrozes. E, vale lembrar aos desavisados, antes de discussões triviais: não houve personagem messiânico que influiu no curso da História.

Sim, correm meninos atrás da bola. Ou da lata. Ou mesmo da garrafa que, na lúdica imaginação infantil, pode mimetizar o objeto que levanta multidões ao entrar na rede. Embora o beisebol seja o esporte com maior poder de atração junto aos cubanos, bares e restaurantes transmitem, por exemplo, o Campeonato Espanhol, aproximando o trio latino-americano do ataque do Barcelona e os garotos que brincam nas ruas de Havana, sob escassa iluminação.

Agilizam seus movimentos as pessoas que buscam um lugar nas filas para as compras. Utensílios que custam, além de valores em moeda local, horas a fio. A dificuldade de suprimento gerada por um embargo e um regime inverossímeis podem ofuscar os avanços em áreas da Saúde e da Educação, registrados durante a última metade de século? À beira do oceano e ao som da reconhecida música cubana, não deixa de ser uma lástima perder tempo.    

Ligeiros se mostram os representantes do governo norte-americano, em busca de um mercado ignorado desde um distante ano de 1959. Apesar de muitos estadunidenses ainda vestirem capacetes, virarem canhões para a Baía dos Porcos e lembrarem saudosos de Ronald Reagan, a Guerra Fria acabou. Para fortalecer laços comerciais, será preciso fazer concessões. Reconhecer, inclusive, os méritos que residem do outro lado das léguas marítimas que separam ambos os países.

Móveis sãos os movimentos dos muitos militares cubanos espalhados por La Habana, também dando mostras de que aguardam resultados do entrevero entre Kennedy e Kruschóv. A belicosa postura contrasta com as belezas inúmeras da cidade que foi, durante muito tempo, o paraíso e o purgatório das Américas. Contraste semelhante ao da imagem recorrente de um carro da Polícia Militar, exibindo um fuzil a descansar, diante dos mares cariocas. As semelhanças latino-americanas...

Longe da contaminação física que os extremismos costumam causar, repousa a única certeza que vive na ilha: Cuba é só um lugar. Muitas vezes, por mais elementar que pareça, é necessário bradar tal frase. É um território ocupado por uma Havana Velha culturalmente evoluída, por um inebriante gosto de tabaco, por sonhos, por sangue, ou por tudo que homens e mulheres forem capazes de ali construir.  

Havana, Janeiro de 2015.


Por Helcio Herbert Neto.      

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Memória eclipsada


Para ler o som de: Eclipse - Pink Floyd

O acesso aos compartimentos da memória pode ser uma tarefa artística. Não há um inventário estatístico das experiências vividas. Tampouco existe a possibilidade de revistar os momentos para uma análise técnica e isenta. Ao recordar, os fatos são redescobertos, já ensaboados pelos afetos que, de alguma maneira, têm relação com o instante pretérito.

São inúmeros os casos de recordações que escorregam nos sentimentos envolvidos e desaparecem. Diante do avançado do tempo, é bem verdade, as memórias acabam por apagadas por condições alheias aos ambientes afetivos – condições médicas, por exemplo. As emoções, entretanto, também renegam fatos ao obscuro do inconsciente.

Há até mesmo lembranças de um passado recente que são alteradas pela raiva, paixão, descontentamento ou simples negligência que circunscreviam tal episódio. Um lugar que parece mais belo e pessoas que são lembradas como mais desagradáveis são exemplos da ineficácia do inventário da memória.

Quem deslizou os olhos até este quarto parágrafo deve se perguntar qual a relação de tudo isso com o esporte – que é o fio condutor do que aparece nesta página escondida da internet. Já engajado em tratar da abertura da Olimpíada de 2016, houve uma tentativa, de minha parte, de recordar como foi a cerimônia inicial dos Jogos Olímpicos de 2012.  

Ao me imbuir de tal tarefa, fui abordado por um mecanismo da memória que nem pertence à categoria das lembranças apagadas nem às recordações repaginadas. Ainda tinha vivo na cabeça o exato instante em que a chama olímpica foi acesa. Ao som de “Eclipse”, última faixa do disco “Dark Side of the Moon”, do Pink Floyd.

Nada, em minha pueril imaginação, poderia ser mais fantástico do que o supracitado desfecho musical. No entanto, ao pesquisar imagens do evento na internet, terminei por me espantar: sim, é possível algo mais marcante. Ao fim da música da banda londrina, Paul McCartney interpretou “The End”, a também derradeira canção do álbum “Abbey Road”, dos Beatles.

Era a realidade se mostrando mais fantástica que os registros da memória afetuosa. Ao mesmo tempo, foi uma cerimônia espetacular e simbólica sobre a cultura britânica do século passado. Embora seja difícil competir com a influência internacional da Inglaterra, opino: é possível que o Brasil faça uma abertura também muito forte.

O reaparecimento de João Gilberto seria vertiginoso. Reuniões dos Mutantes, dos Doces Bárbaros ou dos sambistas que apareceram a partir do Cacique de Ramos também seriam capazes de tanto. Bandas como Nação Zumbi e Sepultura reúnem admiradores ao redor do mundo. Por motivos óbvios, a presença dos Paralamas na abertura dos Jogos Paraolímpicos seria poderosa.

E esses são apenas alguns exemplos.


Por Helcio Herbert Neto. 

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Ascese requerida

Não basta ser razoável. Não basta ser passional. Para a opinião pública, é necessário ser asceta. (Marcelo Sadio/Divulgação)

Fim de ano. Queixas infindáveis formam filas, talvez motivadas pelas contas que eclodirão em poucos dias, no começo do próximo exercício. Talvez pelo acúmulo de querelas, composto nos últimos, longos e sufocantes meses. Cansados de expor as críticas em redes sociais, multidões se aglutinam para submeter as reclamações em busca de repercussão. A procissão caminha rumo a um ente metafísico, poderosíssimo -- a opinião pública.

Talvez este espectro tenha, hoje, o vulto da Igreja no medievo. Ou o poder que os bigodes de Stalin tinham entre os soviéticos no século passado. A opinião pública é o símbolo maior da moral. É o centro de tudo, todos buscam a recepção e a repercussão. Para operar de forma eficiente, distribui-se em agências próximas, nas esquinas. Como as bancárias. E assim como os bancos, reúne fileiras infindáveis em certos (e recorrentes) eventos.

Entre os tantos que ali estavam naquele período perto das festas, havia um pacato cidadão. Como tantos, mas este requer um olhar especial. E não me refiro ao intenso monitoramento das câmeras de segurança. O figurão levava consigo uma calhamaço de papel, pesado e amassado. Reunia ali os argumentos sobre os quais desejava lançar luz. Não tinha a preferência dos atendimentos personalizados e teve que digerir a espessa manhã de espera.

Finalmente, chegou ao atendimento e entregou ao atarefado funcionário atrás do balcão. Este olhou os documentos e os encaminhou à comissão julgadora. Voltou vinte e três minutos depois.

"Infelizmente, suas reclamações foram indeferidas."

"Mas por quê? Todos os argumentos aí estão."

"Todas as reclamações não atenderam o mesmo critério. Tópico 66: ascese requerida", justificou o atendente, apontando para a lista de regras, presa na parede.

O homem que solicitava interpelou, na tentativa de solucionar o problema. Neste momento, uma lágrima rolou pelas suas costas. Embora o condicionador de ar estivesse ligado, o volume de gente consumia todo o frescor do aparelho, deixando na atmosfera somente o calor.

"Os doutos da opinião pública exigem ascese para aceitar reclamações. Veja o caso da sua primeira reivindicação: a fragilidade dos programas sociais do governo! Você quer que eles sejam expandidos", exemplificou, exaltado, o funcionário.

"E qual o problema?", questionou, pacato.

 "Você estudou a vida inteira em colégios particulares. Tem o carro lançado no ano passado. Passou longe de conviver fome", explicou o rapaz da agência. O moço balançou a cabeça, como que não entendendo nada do que vinha do outro lado da mesa.

"Você não pode pedir pelo que não te afeta. Não faz sentido. É incoerente. Seus argumentos são até cabíveis, mas você nunca viveu a miséria. Ninguém aceitaria", continuou o atendente.

"Eu tenho que militar na pobreza, pelo que você está falando."

"Não fale isso! A opinião pública odeia a palavra militância. Sua situação não é das piores. Só falta um documento. É só você voltar com o comprovante de dez anos de risco social."

"Tenho que morrer de fome para que aceitem essa reclamação como verossímil?", perguntou, incrédulo, o senhor. Foi respondido como impaciência.

"Meu caro, você faz o que quiser. Só com o comprovante o pessoal vai aceitar", cortou o funcionário.

"E quanto à outra queixa?", perguntou o requerente.

O jovem começou a folear a reclamação seguinte, com receio que o inquieto rapaz do outro do balcão visse os impropérios que a comissão havia rabiscado, com caneta vermelha, nas páginas do cuidadoso dossiê. Respirou fundo e sentenciou:

"Meu senhor, você reclama aqui dos resultados do seu time de futebol. Mas você não tem o cartão diamante de sócio-torcedor, só foi oito vezes ao estádio assistir aos jogos. E mesmo assim foi usando camisas muito antigas, da década passada. Não contribui com a renda do clube. Não sofre nem acompanha. Apuramos também que você não sabe quando o seu time foi bicampeão nacional. Novamente, portanto, tópico 66."

Faltaram-lhe palavras. Pensou em lembrar que, entre os argumentos, estava a corrupção dos dirigentes. Nos papéis, também justificava a baixa adesão dos torcedores com o aumento do valor dos ingressos. Descartou a tentativa de continuar reforçando a reclamação. A opinião pública é implacável. Antes de sair da fila, balbuciou que o clube era o maior amor de sua vida. Abalado, chegou em casa, ligou o computador e postou em uma rede social ambas as queixas. Duas pessoas curtiram: sua mãe, já idosa; e um amigo seu de colégio, que não via há décadas.

Ninguém comentou. Ninguém compartilhou. Os argumentos caíram no esquecimento.


Por Helcio Herbert Neto.