Em 2000, o professor Tunico Amâncio, do
Departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense, publicou um
importante estudo sobre aquela que chamou de “época de ouro do cinema estatal
brasileiro”, o cinema dos filmes produzidos e distribuídos pela Embrafilme. A
estatal era controversa desde seu nascimento e, mesmo em sua época dourada,
quando atingiu os maiores índices de público nas bilheterias e conquistou
prêmios importantes, chovia sobre a empresa denúncias e reclamações de
favorecimentos, conchavos, corrupção, etc.. O título do estudo de Amâncio é
emblemático: “Artes e manhas da Embrafilme – o cinema estatal brasileiro em sua
época de ouro, 1977-1981”. Amâncio é também um estudioso do Brasil. É dele, por
exemplo, o roteiro do documentário “Olhar estrangeiro”, de Lúcia Murat, baseado
no livro “O Brasil dos gringos – imagens no cinema”, também escrito por
Amâncio, ambos leituras sobre a imagem do Brasil projetada em diversos filmes
ao longo da história do cinema mundial.
O interessante da anotação de Amâncio é que ela nos
leva a pensar que, na verdade, tudo no
Brasil é cheio de artes e manhas. E o futebol é um terreno particularmente
fértil para elas. Mesmo quando tudo
parece, aos olhos incautos, conspirar pela consolidação de uma “época de ouro”
do futebol jogado em solo nacional, com grandes jogadores, grandes
estádios/arenas, grandes cifras e patrocínio, direitos de transmissão, etc.,
ainda assim sobrevivem as artes e manhas do futebol brasileiro. Brasil-il-il.
Nas últimas semanas, elas, as manhas, chegaram com
força, como geralmente fazem em final de temporada, sobretudo nas temporadas em
que grandes clubes ameaçam derrapar no calabouço da série B. Mas esse ano o prato está cheio.
Manhas como a cavadinha política do PROCON-RJ e boa
parte da imprensa local sobre o aumento dos preços para os ingressos na decisão
da Copa do Brasil. Ora, o Flamengo é uma entidade privada que pratica os preços
que bem entender sobre seus produtos e espetáculos. Salvo aquelas cinquenta
figuras carimbadas que estão sempre protestando contra qualquer coisa
politicamente interessante no clube, não vi essa grita toda dentro da torcida
do Flamengo. Conversei com muita gente, de diferentes rendas, e o perfil de
quem vai ou não vai é mais ou menos o mesmo dos jogos a quinze ou quarenta
pratas. Quem vai ao Maracanã como hábito – branco ou preto, rico ou pobre -, vai
à decisão. Quem não costuma ir, não vai. Ou vai. Tanto faz. A polêmica ficou
para os pachequistas.
Outra manha clássica foi essa brilhante ideia do
São Paulo de exigir que a Ponte Preta não jogasse em seu estádio a partida de
volta das semifinais da Copa Sulamericana. Legal. Ao mesmo tempo em que o
Atlético-PR era tranquilamente autorizado a mandar a decisão do segundo torneio
mais importante do país no pardieiro de gramado medonho da Vila Capanema.
Há muito tempo se critica a qualidade dos gramados
brasileiros, mesmo na elite do futebol nacional. Agora, com a inauguração e/ou
reforma de alguns dos principais estádios do país, o abismo fica mais flagrante.
Eu sou da tese de que gramados ruins deveriam ser banidos da série A. Nada
justifica. Qualquer time que dispute esse nível do futebol nacional ganha
algumas dezenas de milhões de reais em patrocínios e direitos de transmissão, portanto
não há justificativa plausível para não manter, pelo menos, um gramado decente.
Não estou falando de arenas faraônicas, apenas de grama verde e regular em cima
de piso macio.
O Atlético-PR parece um clube organizado, deve bem menos
que outros na praça e está reformando seu estádio para a Copa do Mundo. Mas -
que azar! – sua cidade não tem outro campo decente para oferecer. Nesse caso,
resta à organizadora da competição obrigar o time a jogar no lugar mais perto
que apresentar condições mínimas. É uma lástima, um grave azar que a outra
cancha decente na cidade do Atlético seja a do Coxa, que em hipótese alguma –
e com razão, futebol vive da rivalidade – emprestará ou alugará seu campo para
o arquirrival. Mas é o que tem. O Atlético, com toda sua estrutura, poderia ter
feito uma vaquinha com o Paraná e transformar o pasto da Capanema numa grama.
Só isso.
Defendi aqui no Rio, quando o Engenhão
vergonhosamente fechou e o Maracanã ainda não estava pronto, que os times do
Rio jogassem em qualquer lugar, menos o Rio. Salvo o Vasco, que mantém
honrosamente seu estádio em condições mínimas, os outros que se virassem, caso
o Vasco não se dispusesse – como não se dispôs, também com razão – a alugar seu
campo para os arquirrivais. O Rio (o estado, não só a cidade), oferece três
estádios com mínimas condições de abrigarem jogos da série A: o Maracanã, o
Engenhão (com ressalvas ao gramado) e São Januário. O resto – Macaé e Volta
Redonda que me perdoem – é forçar a barra.
Muito se falou que o Náutico fez a campanha
vergonhosa que fez porque não jogou no Estádio dos Aflitos, onde teoricamente o
calor da torcida favorecia. Com todo respeito ao Náutico, há muitos anos o
Estádio dos Aflitos não oferece um gramado à altura da primeira divisão. A
torcida que vá cobrar sua diretoria por reformas na cancha tradicional ou tratar
de transformar a Arena do Recife no caldeirão de que o time precisa.
A Ponte Preta assinou o regulamento da Copa
Sulamericana lá atrás e sabia que seu estádio não estava capacitado. Duvidou
que chegaria onde chegou e agora, graças à manha do São Paulo (especialista no
quesito, aliás), ficou impedida de mandar um dos jogos mais importantes de sua
história no seu histórico campo. Se o São Paulo não fosse manhoso, a Macaca
jogaria lá, mas ser manhoso não é necessariamente estar errado. Errado é mudar
a regra com a bola em jogo. A Ponte que
jogue em Mogi e trate de ratificar o castigo ao manhoso. Com sua mania de cagar
goma, o São Paulo jogou gasolina no inflamado brio pontepretano e pagou caro
por isso no primeiro jogo. Mas nada impede, claro, que o tricolor atropele a
Ponte no jogo de volta e faça valer a diferença de tamanho entre os clubes no
campo, para além dos gabinetes. E aí será a Ponte a fazer manha, chorando pelos
cantos que o garoto grande da turma bateu nela.
Na outra manha da hora, os times que disputam
braçada a braçada um lugar no bote salva-vidas da série A resolveram ter
ataques de pelanca porque o Júlio Baptista, do Cruzeiro, disse ao Cris, do
Vasco, durante o jogo do último sábado (Vasco 2 x 1 Cruzeiro, no Maracanã),
algo como: “vai lá e faz outro, porra, faz outro logo”. Pronto. Virou uma sanha
e times como o Fluminense – outro campeão da manha – se arvoraram a prestar
queixa porque o trecho retirado da fala do J. Baptista supostamente denunciaria
um esquema de favorecimento ao Vasco. O Cruzeiro ganhou de todo mundo no
campeonato, conquistou a taça com um punhado de rodadas de antecedência, tem
uma Libertadores para planejar em 2014 e não se pode dar ao direito de relaxar.
Ele precisa jogar no fio da navalha porque o Fluminense, o Coritiba, o
Criciúma, o Bahia e afins foram bisonhos ao longo do ano e agora estão com a
corda no pescoço. Legal isso.
A outra falsa polêmica é a possibilidade de a
Portuguesa perder uns preciosos pontinhos por ter escalado durante o campeonato
algum ou alguns jogadores inaptos, ou alguma cretina filigrana jurídica do gênero. E
novamente entre o pool de manhosos estão o Fluminense, o Coritiba, o Bahia, que tentam uma espécie de reedição da
histórica manha corintiana que assaltou o Brasileirão 2005, isto é, favorecer
todos os adversários ao invés de punir o infrator – neste caso, a Portuguesa.
E enquanto tudo isso acontece, as chances de um
brasileiro abiscoitar de novo a Sulamericana são de 50%. A Ponte bateu o Vélez
em Buenos Aires com direito a Fernando Bob dando lençol no goleiro. A Seleção
de Felipão segue dando pintas de que está com a faca entre os dentes para
passar o carro em todo mundo na Copa do ano que vem. E o Galo Doido, comandado
por um matreiro Cuca e o sempre imponderável Ronaldinho, chega manso mas poderá
surrupiar o título mundial que o mundo todo já entregou de antemão ao poderoso
Bayern. Tem manha, mas também tem arte.
Entre artes e manhas, o futebol brasileiro parece
condenado a crescer. Crescerá torto, estranho, sujo, insano e irremediavelmente inovador. Como o
Brasil.