segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Artes e manhas do futebol brasileiro


Em 2000, o professor Tunico Amâncio, do Departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense, publicou um importante estudo sobre aquela que chamou de “época de ouro do cinema estatal brasileiro”, o cinema dos filmes produzidos e distribuídos pela Embrafilme. A estatal era controversa desde seu nascimento e, mesmo em sua época dourada, quando atingiu os maiores índices de público nas bilheterias e conquistou prêmios importantes, chovia sobre a empresa denúncias e reclamações de favorecimentos, conchavos, corrupção, etc.. O título do estudo de Amâncio é emblemático: “Artes e manhas da Embrafilme – o cinema estatal brasileiro em sua época de ouro, 1977-1981”. Amâncio é também um estudioso do Brasil. É dele, por exemplo, o roteiro do documentário “Olhar estrangeiro”, de Lúcia Murat, baseado no livro “O Brasil dos gringos – imagens no cinema”, também escrito por Amâncio, ambos leituras sobre a imagem do Brasil projetada em diversos filmes ao longo da história do cinema mundial.

O interessante da anotação de Amâncio é que ela nos leva  a pensar que, na verdade, tudo no Brasil é cheio de artes e manhas. E o futebol é um terreno particularmente fértil para elas. Mesmo quando tudo parece, aos olhos incautos, conspirar pela consolidação de uma “época de ouro” do futebol jogado em solo nacional, com grandes jogadores, grandes estádios/arenas, grandes cifras e patrocínio, direitos de transmissão, etc., ainda assim sobrevivem as artes e manhas do futebol brasileiro. Brasil-il-il.



Nas últimas semanas, elas, as manhas, chegaram com força, como geralmente fazem em final de temporada, sobretudo nas temporadas em que grandes clubes ameaçam derrapar no calabouço da série B. Mas esse  ano o prato está cheio.

Manhas como a cavadinha política do PROCON-RJ e boa parte da imprensa local sobre o aumento dos preços para os ingressos na decisão da Copa do Brasil. Ora, o Flamengo é uma entidade privada que pratica os preços que bem entender sobre seus produtos e espetáculos. Salvo aquelas cinquenta figuras carimbadas que estão sempre protestando contra qualquer coisa politicamente interessante no clube, não vi essa grita toda dentro da torcida do Flamengo. Conversei com muita gente, de diferentes rendas, e o perfil de quem vai ou não vai é mais ou menos o mesmo dos jogos a quinze ou quarenta pratas. Quem vai ao Maracanã como hábito – branco ou preto, rico ou pobre -, vai à decisão. Quem não costuma ir, não vai. Ou vai. Tanto faz. A polêmica ficou para os pachequistas.

Outra manha clássica foi essa brilhante ideia do São Paulo de exigir que a Ponte Preta não jogasse em seu estádio a partida de volta das semifinais da Copa Sulamericana. Legal. Ao mesmo tempo em que o Atlético-PR era tranquilamente autorizado a mandar a decisão do segundo torneio mais importante do país no pardieiro de gramado medonho da Vila Capanema.

Há muito tempo se critica a qualidade dos gramados brasileiros, mesmo na elite do futebol nacional. Agora, com a inauguração e/ou reforma de alguns dos principais estádios do país, o abismo fica mais flagrante. Eu sou da tese de que gramados ruins deveriam ser banidos da série A. Nada justifica. Qualquer time que dispute esse nível do futebol nacional ganha algumas dezenas de milhões de reais em patrocínios e direitos de transmissão, portanto não há justificativa plausível para não manter, pelo menos, um gramado decente. Não estou falando de arenas faraônicas, apenas de grama verde e regular em cima de piso macio.

O Atlético-PR parece um clube organizado, deve bem menos que outros na praça e está reformando seu estádio para a Copa do Mundo. Mas - que azar! – sua cidade não tem outro campo decente para oferecer. Nesse caso, resta à organizadora da competição obrigar o time a jogar no lugar mais perto que apresentar condições mínimas. É uma lástima, um grave azar que a outra cancha decente na cidade do Atlético seja a do Coxa, que em hipótese alguma – e com razão, futebol vive da rivalidade – emprestará ou alugará seu campo para o arquirrival. Mas é o que tem. O Atlético, com toda sua estrutura, poderia ter feito uma vaquinha com o Paraná e transformar o pasto da Capanema numa grama. Só isso.

Defendi aqui no Rio, quando o Engenhão vergonhosamente fechou e o Maracanã ainda não estava pronto, que os times do Rio jogassem em qualquer lugar, menos o Rio. Salvo o Vasco, que mantém honrosamente seu estádio em condições mínimas, os outros que se virassem, caso o Vasco não se dispusesse – como não se dispôs, também com razão – a alugar seu campo para os arquirrivais. O Rio (o estado, não só a cidade), oferece três estádios com mínimas condições de abrigarem jogos da série A: o Maracanã, o Engenhão (com ressalvas ao gramado) e São Januário. O resto – Macaé e Volta Redonda que me perdoem – é forçar a barra.

Muito se falou que o Náutico fez a campanha vergonhosa que fez porque não jogou no Estádio dos Aflitos, onde teoricamente o calor da torcida favorecia. Com todo respeito ao Náutico, há muitos anos o Estádio dos Aflitos não oferece um gramado à altura da primeira divisão. A torcida que vá cobrar sua diretoria por reformas na cancha tradicional ou tratar de transformar a Arena do Recife no caldeirão de que o time precisa.

A Ponte Preta assinou o regulamento da Copa Sulamericana lá atrás e sabia que seu estádio não estava capacitado. Duvidou que chegaria onde chegou e agora, graças à manha do São Paulo (especialista no quesito, aliás), ficou impedida de mandar um dos jogos mais importantes de sua história no seu histórico campo. Se o São Paulo não fosse manhoso, a Macaca jogaria lá, mas ser manhoso não é necessariamente estar errado. Errado é mudar a regra com a bola em jogo.  A Ponte que jogue em Mogi e trate de ratificar o castigo ao manhoso. Com sua mania de cagar goma, o São Paulo jogou gasolina no inflamado brio pontepretano e pagou caro por isso no primeiro jogo. Mas nada impede, claro, que o tricolor atropele a Ponte no jogo de volta e faça valer a diferença de tamanho entre os clubes no campo, para além dos gabinetes. E aí será a Ponte a fazer manha, chorando pelos cantos que o garoto grande da turma bateu nela.

Na outra manha da hora, os times que disputam braçada a braçada um lugar no bote salva-vidas da série A resolveram ter ataques de pelanca porque o Júlio Baptista, do Cruzeiro, disse ao Cris, do Vasco, durante o jogo do último sábado (Vasco 2 x 1 Cruzeiro, no Maracanã), algo como: “vai lá e faz outro, porra, faz outro logo”. Pronto. Virou uma sanha e times como o Fluminense – outro campeão da manha – se arvoraram a prestar queixa porque o trecho retirado da fala do J. Baptista supostamente denunciaria um esquema de favorecimento ao Vasco. O Cruzeiro ganhou de todo mundo no campeonato, conquistou a taça com um punhado de rodadas de antecedência, tem uma Libertadores para planejar em 2014 e não se pode dar ao direito de relaxar. Ele precisa jogar no fio da navalha porque o Fluminense, o Coritiba, o Criciúma, o Bahia e afins foram bisonhos ao longo do ano e agora estão com a corda no pescoço. Legal isso.

A outra falsa polêmica é a possibilidade de a Portuguesa perder uns preciosos pontinhos por ter escalado durante o campeonato algum ou alguns jogadores inaptos, ou alguma cretina filigrana jurídica do gênero. E novamente entre o pool de manhosos estão o Fluminense, o Coritiba, o Bahia, que tentam uma espécie de reedição da histórica manha corintiana que assaltou o Brasileirão 2005, isto é, favorecer todos os adversários ao invés de punir o infrator – neste caso, a Portuguesa.

E enquanto tudo isso acontece, as chances de um brasileiro abiscoitar de novo a Sulamericana são de 50%. A Ponte bateu o Vélez em Buenos Aires com direito a Fernando Bob dando lençol no goleiro. A Seleção de Felipão segue dando pintas de que está com a faca entre os dentes para passar o carro em todo mundo na Copa do ano que vem. E o Galo Doido, comandado por um matreiro Cuca e o sempre imponderável Ronaldinho, chega manso mas poderá surrupiar o título mundial que o mundo todo já entregou de antemão ao poderoso Bayern. Tem manha, mas também tem arte.

Entre artes e manhas, o futebol brasileiro parece condenado a crescer. Crescerá torto, estranho, sujo,  insano e irremediavelmente inovador. Como o Brasil.

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