terça-feira, 26 de novembro de 2013

O herói de mil faces e seus clichês


Sempre fui aficionado por histórias, por narrativas de uma maneira geral. Há algum tempo, porém, passei a me interessar mais pela forma como elas ganham vida e pela estrutura que as rege. Nos trabalhos do mitólogo Joseph Campbell e do roteirista Christopher Vogler encontrei respostas para as perguntas que eu sequer sabia que tinha. Tudo – e digo tudo mesmo – pareceu absolutamente mais claro quando me foi apresentada de forma profunda a ‘jornada do herói’ e seus meandros.

“A jornada do herói não é uma invenção, mas uma observação. É o reconhecimento de um belo modelo, um conjunto de princípios que governam a condução da vida e o mundo da narrativa, do mesmo modo que a medicina e a química governam o mundo físico. É difícil evitar a sensação de que a jornada do herói existe em algum lugar, de algum modo, como uma realidade eterna, uma forma ideal platônica, um modelo divino. Desse modelo, cópias infinitas e altamente variadas podem ser produzidas, cada uma repercutindo o espírito essencial da forma.”, diz Christopher Vogler em seu livro ‘A Jornada do Escritor: estruturas míticas para escritores’, que acabou se tornando uma espécie de bíblia de Hollywood.

E aí eu percebi que a história de uma Guerra Intergaláctica e a de um casal de jovens que se apaixona nas férias de verão não têm tanta diferença assim. Por mais que você crie resistência (como eu criei), vai acabar descobrindo que a estrutura que rege as narrativas é a mesma. E não é porque se convencionou isso, porque é mais fácil ou porque é do interesse de poderosos; é simplesmente porque assim é na vida. Há heróis, vilões, mentores, arautos, chamados à aventura, resistências aos chamados, obstáculos, superações desses obstáculos e por aí vai. A estrutura existe. Os clichês estão por toda a parte - não só nos filmes -, e eles, bem ou mal, constroem as narrativas (ainda que o negão engraçadinho não precisasse morrer sempre nos filmes de suspense ou as cenas de dança nem sempre precisassem terminar com um olhar incriminador da velha rabugenta para as palmas de algum outro jurado que acabou se comovendo).

O futebol está cheio desses clichês, ainda que se fale em ‘caixinha de surpresas’. Não que eu tenha virado vidente de um dia para o outro, mas é inegável que certas narrativas se repetem com muita frequência e isso não é mera coincidência.  E aí me pus a pensar (na verdade foi isso que me levou a todo resto) e constatei que esse time do Flamengo, ou melhor, essa temporada é uma síntese perfeita de absolutamente tudo que o Flamengo tem narrado – ou tudo que tem sido narrado sobre o Flamengo – nos últimos anos, nos anos dos quais me recordo bem. 

Em todos os momentos importantes (ou quase importantes) do ano, eu tive a impressão de que já tinha presenciado a experiência anteriormente e sabia qual seria o desfecho. O ano do Flamengo é um clichê gigante. É como se tivessem compilado tudo de mais Flamengo dos últimos anos e juntado em uma temporada só. O furor apaixonadamente precipitado no Carioca e a posterior constatação de que Rafinha não jogava absolutamente nada (quantas vezes?). A saída polêmica de um ‘ídolo’ pela porta dos fundos. A aflição sem fim do Brasileiro, as politicagens da Gávea; a velha história do muro pichado. As escolhas erradas para o comando, as vaias, jogador batendo de carro no auge da crise e, em meio a tudo, vitória sobre os rivais. É ser o único time a não ganhar do Náutico e é também tomar o gol de goleiro aos 47 do segundo tempo. O técnico motherfucker que não dá certo, e a mudança de perspectiva com um simples auxiliar que estava lá há tanto tempo...O Hernane. É o Hernane aprendendo a jogar futebol, e o Marcelo Moreno, R$300 mil por mês-status de titular...banco. É o Carlos Eduardo contratado para ser o destaque sendo vaiado jogo após jogo, e o Paulinho (?) se tornando xodó. É a total reversão de expectativas na qual o Flamengo é mestre. É o gol aos 43 do segundo tempo contra o superpoderoso Cruzeiro virando o leme. E o persistente perrengue no Brasileiro apesar de tudo. É o Amaral ressurgir das cinzas, e o Wallace chegar a ser capitão. É a torcida comprar a briga e empurrar um time que só ficou uma rodada entre os nove primeiros do campeonato nacional de pontos corridos à final do campeonato nacional de mata-mata. É torcer para pegar o maior e não o menor, e quase torcer para não "construir" resultado no jogo de ida devido a traumas memoráveis de acomodação.
E aí você pode pensar que estou sendo precipitado ao dizer tudo isso antes do jogo de amanhã. Mas aí está outro ponto: não faz diferença. Só há três possibilidades para o jogo decisivo dessa quarta-feira

1. Um desfecho natural – não sem drama, claro – com vitória do Flamengo, que será absolutamente chupado pela mídia pelo seu poder de reação, torcida, espírito copeiro e etc.
2. Um desfecho trágico – que não deixa de ser clichê -, onde o Atlético surpreende o Maracanã lotado e decepciona 35 milhões de pessoas. Ninguém terá mais paciência para o Wallace, que errou no lance do gol, para o Carlos Eduardo, que andou em campo, para o Léo Moura, que está velho, e por aí vai. Certamente haverá um carrasco, que encabeçará as montagens nas redes sociais com Cabañas, Montillo e por aí vai.
3. O jogo está difícil, eu diria praticamente perdido, quando Carlos Eduardo – ou quem sabe até o Adryan – acerta um chute espetacular na gaveta, dá o título ao Flamengo e vira herói.

Todas as opções são muito Flamengo, e já não há chance de que esse jogo e este ano não acabem em clichê, ainda que tenham me implorado para que não postasse este texto antes do jogo de amanhã.


P.SParabéns ao sujeito que me deu uma das maiores alegrias da minha vida. Mas parabéns não pelos 38 anos que completa hoje, pelo gol do título ou pela carreira vitoriosa - outros tantos o fizeram; parabéns por ter passado por tudo que passou e representar o que representa sem um pingo de vaidade. Parabéns por ter carregado a cruz sozinho na vida para dividir a redenção com 35 milhões de fiéis no fim. Parabéns por ser o herói que sangra, o ídolo que se curva. Sem despedida, sem pedestal. Entre 'Petkovics e Adrianos', foi você, Angelim. O mais humano de todos.




Por Beto Passeri.

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