sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Às vezes só resta o vazio

Não saberia, de modo algum, dizer quanto tempo teria permanecido desacordado não fosse aquele cutucão. Cutucão forte, apressado, de quem está perdendo a paciência numa tentativa vã de ressuscitar um semimorto. Trabalho cumprido, o estranho sumiu de vista. 

O único som que ouvia, além da preguiçosa batida do próprio coração, era uma voz feminina no português que não entendia. Mas entendia inglês e tinha bom senso, de modo que "final" "estação" e "obrigatório" foram a senha para que se levantasse contra a própria vontade.

Cambaleou não só uma, mas duas vezes antes de ganhar a plataforma completamente vazia. Respirou fundo para tomar consciência, mas a única sensação que teve foi de um machado atingindo em cheio seu crânio. Definitivamente, essa era uma ressaca daquelas. 

Olhou o relógio e nem teve forças para reagir: havia perdido o voo. Havia perdido o voo e precisava subir as escadas para ter alguma pista de onde estava e de qual seriam os seus próximos passos. Tudo, nesse momento, era complexo e delicado.

Cada degrau demandava uma eternidade, e em cada uma dessas eternidades estavam as lembranças de uma noite, um mês, uma Copa. Disseram que não haveria Copa. Que no Brasil as coisas estavam pegando fogo; que a política encobrira o futebol, que a empolgação dos brasileiros não resistira ao cansaço e que não haveria diversão. É bem possível que ele mesmo estivesse flutuando em outra realidade, mas, com seu olhar mais sincero e profundo, não foi isso que viveu. Houve Copa, houve muita Copa, Copa além do que poderia prever. 

E ia se recordando de uns beijos mal estalados, de uns sexos mal transados, de umas conversas atravessadas e de umas amizades que pareceram durar a vida toda. Brasileiros, franceses, ingleses, chilenos, italianos, colombianos, e - quem diria - até argentinos. Todos, ou quase todos, muito simpáticos, explodindo em uma alegria que política, entidade ou confederação nenhuma pode minguar ou tentar carregar os créditos. Uma felicidade plena, quase infantil. 

Finalmente chegara à superfície. O sol se espreguiçava, sonolento, por entre prédios velhos, enormes e pichados. Olhou para sua própria camisa branca manchada de sabe-se lá o quê. Sentiu um alívio tremendo ao lembrar que era campeão do mundo. Alívio que rapidamente foi desmanchado pela indiferença estampada no rosto dos transeuntes. Uma tensão tão grande que o ar poderia ser cortado com faca. Pessoas apressadas, exageradamente objetivas, sem escadas rolantes, sem tempo para sofrer. Como se nunca, nunca tivesse acontecido uma final de Copa do Mundo a alguns metros dali. 

Comprou uma água e sentou-se num banco qualquer na sombra. Em Berlim, em Munique, em Colônia, em Dresden e em todas as outras cidades as pessoas certamente enlouqueciam neste momento. Entristeceu-se. Horas depois todas estariam pegando o metrô, pensou, e esgotando esse assunto a caminho do trabalho, de modo que logo tudo estaria insuportavelmente ultrapassado e igual. 

Tomou um longo gole d'água até esvaziar a garrafa. Sentiu-se muito melhor. Estava a mesma merda de sempre. 

Às vezes - e, por Deus, são tantas - só resta o vazio.



Por Beto Passeri.







terça-feira, 12 de agosto de 2014

Luiz Antônio, favelas e preconceito social

O que muros sociais têm para mostrar. (Natasha Montier/Divulgação)

Para ouvir ao som de "O Homem na Estrada" - Racionais MC's

A estética urbana das favelas e periferias simboliza muito mais do que a sindrômica precariedade nas políticas públicas de habitação no Brasil. Para tantos, as periferias e comunidades carentes são sinônimo de violência e barbárie. Nas vielas e guetos, está escondido o crime, em sua plenitude, pensam eles. Tal relação entre as regiões que enfrentam maiores dificuldades e a criminalidade é uma conclusão automática na cabeça de grande parte das pessoas e esconde o mais vil preconceito social.

Algo parecido com isso (em menor escala, óbvio) acontece quando se fala em Flamengo. As associações recentes entre atletas rubro-negros e narcotraficantes mecanizam ainda mais essas conclusões. O caráter popular do time da Gávea também. Luiz Antônio, volante do elenco do clube carioca, é investigado por relação com grupos paramilitares que controlavam um condomínio do programa Minha Casa, Minha Vida, do Governo Federal, na zona oeste do Rio. Mais uma comprovação para uma conclusão dos simplistas.

Em ambos ambientes -- o time de maior torcida do país e as áreas menos abastadas --, sobrevoa o mesmo mal: o abandono. A favela sofre com o ostensivo contato com um tentáculo do Estado, a Polícia. Militarismo e clima de guerra estão presentes, enquanto educação, moradia e saúde são escassas. A ignorância por parte do Poder Público e da maior parte da abastada sociedade civil gera um ambiente propício para a proliferação de violações. Vale ressaltar, embora a maioria seja de pessoas honestas nas periferias.

Existe uma condescendência muito grande, por parte das autoridades, com as direções dos grandes clubes brasileiros. Isso resulta na presença de personalidades de idoneidade duvidosa na administração das entidades e em grandes dívidas com o tesouro público. Andrés Sanchez, ex-presidente do também popular Corinthians, revelou-se, recentemente, foi acusado pelo Ministério Público Federal por sonegar impostos. Aliás, Andrés tenta se eleger deputado federal em outubro.

A negligência é reproduzida dentro do clube, também com jogadores e comissão técnica. A espiral de ignorância multiplica casos como o de Luiz Antônio. A condição social com a qual o jogador conviveu na vida inteira também o torna mais suscetível a essa convivência com milicianos, traficantes, policiais, políticos e empresários corruptos e corruptores. A estética da comunidade e a confusão turbulência interna no Flamengo, portanto, denotam o abandono e o retrocesso, além de escancarar o preconceito.

Por Helcio Herbert Neto.                                      


domingo, 10 de agosto de 2014

Vã rivalidade

Mais uma guerra que interessa o estabilishment do futebol (Divulgação) 

O que aconteceu na tarde do Dia dos Pais de 2014, dentro Maracanã, foi mais um capítulo obscuro da recente rivalidade entre Flamengo e Sport. Ambos, trajando vermelho e preto (no caso da partida válida pelo Brasileirão, o time do Recife usou, excepcionalmente, branco) seguidos por multidões e colecionadores de títulos. O pernambucano só tem um nacional. E é aqui começa a oposição entre os dois clubes. Em 1987, Zé Carlos; Jorginho, Leandro, Edinho, Leonardo; Aílton, Andrade e Zico; Bebeto, Renato Gaúcho e Zinho foram campeões da Copa União. 

A escalação é um mantra quase tão presente na memória rubro-negra quanto o time campeão mundial de 1981. O torneio nacional foi organizado por uma incipiente liga de clubes -- o Clube dos 13. A dissidência dos principais emblemas brasileiros ocorreu após a Confederação Brasileira de Futebol decretar que não teria condições financeiras de conduzir o principal campeonato do país naquele ano. É importante lembrar desse último ponto. O Sport, por sua vez, ganhou uma espécie de segunda divisão naquele mesmo ano. Vale lembrar que a Copa União não seguiu a ordem classificatória do ano anterior, em gesto arbitrário. 

No entanto, na tentativa de cooptar a iniciativa de vanguarda, a CBF exigiu que os dois campeões se confrontassem. O Flamengo se negou e fez-se esse nó. Ricardo Teixeira, presidente da entidade máxima do futebol brasileiro, que assumiu em 1989, tomou para si a tarefa de prolongar o máximo a briga e usar a libertária independência daquela Copa União como símbolo maior da necessidade de prestar reverência aos cartolas das federações e da própria confederação. Ousados serão punidos. Um dos (tantos) legados malditos de Teixeira foi conseguir a implosão definitiva da Clube dos 13, ao fim de sua administração.

Para incentivar o ódio, por parte dos pernambucanos, foi evocado o discurso contra o Sul Maravilha, eixo Rio-São Paulo que, é bem verdade, peca com tanta frequência por um elitismo, típico no Leblon e na Avenida Brigadeiro Faria Lima. Usou-se também uma tal taça das bolinhas, em um drama tão desnecessário e longo que nem vale citação neste quinhão virtual. Portanto, é uma incoerência fantasmagórica defender, por exemplo, as reformas no calendário ou a criação de uma liga independente dos clubes brasileiros se, ao mesmo tempo, é levantada a bandeira que proclama o Sport como o vencedor de 1987.

Para quem se interessa pelo debate, vale assistir ao documentário "Copa União".

Por Helcio Herbert Neto.