sexta-feira, 25 de abril de 2014

A morte do século XX


A morte de Gabriel García Márquez representa mais que uma perda inestimável para a literatura, mais que a tristeza dos que se apaixonaram pela sua narrativa única, e representa mais também que esse momento de reflexão global sobre a qualidade e a relevância de sua obra. A morte de Gabo é, para mim, o último e derradeiro golpe sobre o século XX. É a morte desses cem anos, não de solidão, mas de ‘utopia e barbárie’.

Treze anos e quatro meses se passaram desde essa simbólica, porém necessária virada de página. Muita coisa aconteceu, uma nova História está em curso, mas o século XX seguia esticando seus tentáculos sobre o XXI – e é perfeitamente normal que acontecesse. O imaginário do século XX - suas tragédias e glórias, seus protagonistas e, acima de tudo, sua narrativa – está entranhado em nós, mesmo nos que, como eu, já nasceram nos acréscimos.

A ideia de passado como agente implacável do presente e do futuro nos remete, de imediato, ao próprio século XX. Ainda que de forma um pouco equivocada, tendemos a interpretar que a humanidade caminhava num determinado ritmo até o fim do século XIX e que, a partir do século XX, esse ritmo se intensificou exponencialmente. É como se o mundo, tal como conhecemos hoje, tivesse sido construído praticamente todo no último século.

E é compreensível que se enxergue assim. Rádio, TV, Cinema, celulares, times de futebol, Rock, Samba, carros e Internet são, basicamente, filhos do século XX. Assim como as duas Guerras Mundiais, o Holocausto, o Socialismo, o American Dream, o homem na Lua, a luta pelos negros, a luta pelas mulheres, a luta pelos gays e um monte de outras lutas.

Para todos fica muito mais fácil compreender o impacto do fim da União Soviética do que o da Revolução Francesa; da Ditadura do que o da Colonização. E, uns mais outros menos, os personagens estavam aí, quase para serem tocados. Alguns entre nossos vivos viram Hitler, Stalin, Luther King, uma bomba atômica sumir com uma cidade e também Woodstock. Muitos deles acompanharam as sanguinolentas ditaduras na América Latina, a angústia de um mundo dividido no meio pela Guerra Fria, e também os Beatles. E todos nós presenciamos, num intervalo de menos de três anos, Osama Bin Laden, Hugo Chávez e Nelson Mandela deixarem de ser de carne e osso para existirem somente na memória coletiva, nas páginas dos livros e nas efemérides do Jornalismo com o passar dos anos. Fidel Castro está frágil, já não governa e nem aparece em público. É significativo demais para ser ignorado, ainda que seja natural.

Como o próprio García Márquez gostava de dizer, “as histórias nunca são como elas realmente aconteceram, e sim como elas são lembradas e contadas depois”. E foram muitas histórias magistralmente contadas durante e sobre o século XX. Basicamente todos esses – cada um a seu modo – que eternizaram o Zeitgeist desses 100 anos em páginas, nos deixaram. A Geração Beat, Lorca, Cortázar, Hesse, Kafka, Faulkner, Hemingway, Borges, Drummond, Agatha Christie, Neruda, Fitzgerald, Nelson Rodrigues, Orwell, Joyce, Fante, Bukowski, há pouco Saramago e agora García Márquez (que me perdoem os demais).

Acredito que não existe morte na Literatura, pois as palavras escritas e lidas se tornam eternas. Dois dos melhores romances da história – Cem Anos de Solidão e O Amor nos Tempos do Cólera – são imortais. Mas Gabo era humano. Assim como todos os heróis e vilões, que não foram poucos nesses cem anos que mais parecem mil.



Por Beto Passeri.




domingo, 20 de abril de 2014

Dois camaradas e uma bola improvisada

      Uma tarde na Marina Hemingway que mudaria a história.  (Reprodução/site do Governo Cubano)

Quando cocei os olhos, já era fim de tarde. Ambos estavam ali, na minha frente, alcoolizados – embora as doutrinas que nortearam as vidas dos dois não dessem espaço para essas idiossincrasias. Do lado esquerdo da mesa, como deveria ser, os garotos da Ação Libertadora Nacional se divertiam com o encontro inusitado. No canto oposto, os homens da Mesquita Muçulmana do Harlem espreitavam o movimento convulsivo das ruas, típico dos trópicos. Só para garantir, todos já empunhavam suas armas. Disfarçadamente.

A Operação Bandeirantes falhou. Enquanto estuprava mais uma militante política, o Delegado Fleury teve uma parada cardíaca. Talvez estafado pela impotência sexual. Talvez pelas infindáveis trincheiras de cocaína que passavam pelo seu nariz. Com o contratempo, o ex-Deputado Federal Carlos Marighella teve tempo para sair do país e articular a resistência. Aceitou a proposta da pequena ilha que mudou o continente em um certo dia 8 de outubro.

Não era só nas veias abertas da América Latina que o vermelho começava a pulsar mais forte. O preconceito e a desigualdade despertaram um movimento de indignação sob as sombras da Estátua da Liberdade. Malcolm X entendia. Incorporou os suplícios dos guetos ao seu credo na redenção do homem negro, e a “Mensagem às Bases” é a representação disso. Introito fortuito ao Movimento Black Power, que seria desencadeado pouco depois.

O Hotel Theresa, no Harlem, abrigou a comitiva cubana durante uma convenção em Nova Iorque, em 1960. Era o começo de um relacionamento entre os líderes do bairro pobre e os companheiros de Havana. A parceria culminou na presença do líder religioso em Cuba, após um convite de Fidel Castro. Desde quando os ataques contra Malcolm ficaram mais intensos, ele decidiu viajar pelo mundo para fomentar o projeto terceiro-mundista.

A independência dos subdesenvolvidos era sua meta, bem como a difusão do Islamismo pelo planeta. Apesar de estar mais inclinado para o pacifismo, Malcolm reconhecia a força que aquele país representava para o fim da desigualdade. Ignorou a Guerra Fria e os confrontos com o calor que ia viver e ali estava, rodeado de políticos cubanos e de um mulato que experimentava os charutos e runs locais.

A tonalidade da pele talvez fosse a principal semelhança entre eles. Malcolm mais escuro, Marighella mais claro. De resto, só a política os aproximava. Mas foi uma tarde inteira de debate (mentira, um terço de debate e os outros dois de pronunciamento do comandante barbudo). Não havia mais o que falar sobre a geopolítica da desigualdade, dos ventos de mudança e do imperialismo extrativista. Daí a dificuldade que o baiano do antigo PCB enfrentava para se aproximar dos norte-americanos insurgentes.

Pensou em música, mas não conhecia tanto de jazz. Tampouco o muçulmano devia conhecer marchinhas. Não sabia até onde seria desrespeitoso tratar de mulheres, já que o Islã prevê ortodoxia na convivência entre os sexos. Uma pena, porque as mulheres brasileiras, cubanas e norte-americanas tinham em comum a beleza miscigenada do Novo Continente. Foi quando pensou no fervor das massas e na alegria da vitória. Não teria erro.

 – Você gosta de futebol? (em inglês arranhado, ainda que com a ajuda de um dos universitários que compunham o grupo da ALN).

A pergunta gerou o interesse do negro calejado pelo racismo. Gostava sim, muito. Do futebol americano. Estávamos no fim dos anos 1960, portanto uns cinco anos antes da chegada de Pelé aos EUA, para jogar no Cosmos. Ninguém sabia do nosso jogo por lá.

Malcolm respondeu que sim, citou meia dúzia de nomes de times e mais uma dezena de jogadores do esporte. Nesse momento, o desinteressado era Marighella, que não decodificava nada que saia da boca de seu interlocutor. Fingiu entender, para não cortar o papo. Foi quando o islâmico falou de passar e fez um gesto com o braço, como a reposição de um goleiro. Não, aquilo não era o que Gérson fazia com maestria, já nos tempos de Flamengo. O baiano era rubro-negro e corintiano. Amava o calor do povo, por isso as escolhas. Toda essa confusão pouco importava para mim. De longe, eu estava me divertindo muito com tudo aquilo.

 – Não, não é assim – cortou Marighella, ríspido.

Levantou, roubou a tampa de uma das garrafas de rum da mesa e a pôs no chão. Insistiu, fez com que Malcolm levantasse. Chutou a bola improvisada e pediu para que o desengonçado camarada fizesse o mesmo. Eram companheiros de luta, também deveriam ser assim em campo. No restaurante, neste caso específico.

O movimento tirou a sisudez do negro barbado, que também lembrou de qualquer coisa da infância e fez o movimento com a perna. Enfim soube, por instantes, o que era a paixão daquela gente sofrida do sul, que vivia uma guerra injusta, também. Todos riram com a cena. Inclusive eu, no quarto, com a luz apagada. Ao virar de lado, vi as biografias de ambos na estante. Lamentei o encontro que o ocidente não foi digno de ver. Voltei a dormir, dessa vez sem sonhar.

Por Helcio Herbert Neto.