Uma tarde na Marina Hemingway que mudaria a história. (Reprodução/site do Governo Cubano)
Quando cocei os olhos, já era fim de tarde. Ambos estavam ali, na minha frente, alcoolizados – embora as doutrinas que nortearam as vidas dos dois não dessem espaço para essas idiossincrasias. Do lado esquerdo da mesa, como deveria ser, os garotos da Ação Libertadora Nacional se divertiam com o encontro inusitado. No canto oposto, os homens da Mesquita Muçulmana do Harlem espreitavam o movimento convulsivo das ruas, típico dos trópicos. Só para garantir, todos já empunhavam suas armas. Disfarçadamente.
Quando cocei os olhos, já era fim de tarde. Ambos estavam ali, na minha frente, alcoolizados – embora as doutrinas que nortearam as vidas dos dois não dessem espaço para essas idiossincrasias. Do lado esquerdo da mesa, como deveria ser, os garotos da Ação Libertadora Nacional se divertiam com o encontro inusitado. No canto oposto, os homens da Mesquita Muçulmana do Harlem espreitavam o movimento convulsivo das ruas, típico dos trópicos. Só para garantir, todos já empunhavam suas armas. Disfarçadamente.
A Operação Bandeirantes falhou.
Enquanto estuprava mais uma militante política, o Delegado Fleury teve uma
parada cardíaca. Talvez estafado pela impotência sexual. Talvez pelas
infindáveis trincheiras de cocaína que passavam pelo seu nariz. Com o
contratempo, o ex-Deputado Federal Carlos Marighella teve tempo para sair do
país e articular a resistência. Aceitou a proposta da pequena ilha que mudou o
continente em um certo dia 8 de outubro.
Não era só nas veias abertas da
América Latina que o vermelho começava a pulsar mais forte. O preconceito e a
desigualdade despertaram um movimento de indignação sob as sombras da Estátua
da Liberdade. Malcolm X entendia. Incorporou os suplícios dos guetos ao seu
credo na redenção do homem negro, e a “Mensagem às Bases” é a representação
disso. Introito fortuito ao Movimento Black Power, que seria desencadeado pouco
depois.
O Hotel Theresa, no Harlem,
abrigou a comitiva cubana durante uma convenção em Nova Iorque, em 1960. Era o
começo de um relacionamento entre os líderes do bairro pobre e os companheiros
de Havana. A parceria culminou na presença do líder religioso em Cuba, após um
convite de Fidel Castro. Desde quando os ataques contra Malcolm ficaram mais
intensos, ele decidiu viajar pelo mundo para fomentar o projeto
terceiro-mundista.
A independência dos
subdesenvolvidos era sua meta, bem como a difusão do Islamismo pelo planeta.
Apesar de estar mais inclinado para o pacifismo, Malcolm reconhecia a força que
aquele país representava para o fim da desigualdade. Ignorou a Guerra Fria e os
confrontos com o calor que ia viver e ali estava, rodeado de políticos cubanos
e de um mulato que experimentava os charutos e runs locais.
A tonalidade da pele talvez fosse
a principal semelhança entre eles. Malcolm mais escuro, Marighella mais claro.
De resto, só a política os aproximava. Mas foi uma tarde inteira de debate
(mentira, um terço de debate e os outros dois de pronunciamento do comandante
barbudo). Não havia mais o que falar sobre a geopolítica da desigualdade, dos
ventos de mudança e do imperialismo extrativista. Daí a dificuldade que o baiano
do antigo PCB enfrentava para se aproximar dos norte-americanos insurgentes.
Pensou em música, mas não
conhecia tanto de jazz. Tampouco o muçulmano devia conhecer marchinhas. Não
sabia até onde seria desrespeitoso tratar de mulheres, já que o Islã prevê
ortodoxia na convivência entre os sexos. Uma pena, porque as mulheres
brasileiras, cubanas e norte-americanas tinham em comum a beleza miscigenada do
Novo Continente. Foi quando pensou no fervor das massas e na alegria da
vitória. Não teria erro.
– Você gosta de futebol? (em inglês arranhado,
ainda que com a ajuda de um dos universitários que compunham o grupo da ALN).
A pergunta gerou o interesse do negro calejado pelo racismo. Gostava sim, muito. Do futebol americano. Estávamos no fim dos anos 1960, portanto uns cinco anos antes da chegada de Pelé aos EUA, para jogar no Cosmos. Ninguém sabia do nosso jogo por lá.
A pergunta gerou o interesse do negro calejado pelo racismo. Gostava sim, muito. Do futebol americano. Estávamos no fim dos anos 1960, portanto uns cinco anos antes da chegada de Pelé aos EUA, para jogar no Cosmos. Ninguém sabia do nosso jogo por lá.
Malcolm respondeu que sim, citou
meia dúzia de nomes de times e mais uma dezena de jogadores do esporte. Nesse
momento, o desinteressado era Marighella, que não decodificava nada que saia da
boca de seu interlocutor. Fingiu entender, para não cortar o papo. Foi quando o
islâmico falou de passar e fez um gesto com o braço, como a reposição de um
goleiro. Não, aquilo não era o que Gérson fazia com maestria, já nos tempos de
Flamengo. O baiano era rubro-negro e corintiano. Amava o calor do povo, por
isso as escolhas. Toda essa confusão pouco importava para mim. De longe, eu
estava me divertindo muito com tudo aquilo.
– Não, não é assim – cortou Marighella,
ríspido.
Levantou, roubou a tampa de uma das garrafas de rum da mesa e a pôs no chão. Insistiu, fez com que Malcolm levantasse. Chutou a bola improvisada e pediu para que o desengonçado camarada fizesse o mesmo. Eram companheiros de luta, também deveriam ser assim em campo. No restaurante, neste caso específico.
Levantou, roubou a tampa de uma das garrafas de rum da mesa e a pôs no chão. Insistiu, fez com que Malcolm levantasse. Chutou a bola improvisada e pediu para que o desengonçado camarada fizesse o mesmo. Eram companheiros de luta, também deveriam ser assim em campo. No restaurante, neste caso específico.
O movimento tirou a sisudez do
negro barbado, que também lembrou de qualquer coisa da infância e fez o
movimento com a perna. Enfim soube, por instantes, o que era a paixão daquela
gente sofrida do sul, que vivia uma guerra injusta, também. Todos riram com a
cena. Inclusive eu, no quarto, com a luz apagada. Ao virar de lado, vi as
biografias de ambos na estante. Lamentei o encontro que o ocidente não foi
digno de ver. Voltei a dormir, dessa vez sem sonhar.
Por Helcio Herbert Neto. 
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