terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Reze pelo Haiti.



Em 23 de janeiro de 1992, Corinthians e São Paulo faziam uma partida pela Copa São Paulo de Futebol Júnior no estádio do Nacional Atlético Clube, na capital paulista, quando um explosivo caseiro lançando de um lado a outro da arquibancada atingiu Rodrigo de Gasperi. Ele morreu quatro dias depois, vítima de seis traumatismos cranianos e uma lesão cerebral, aos 13 anos de idade. A opinião pública despertava definitivamente para aquilo que parecia um problema grave e crescente: a violência nos estádios de futebol.

Falar de violência nos estádios seria mais ou menos como falar da violência nos botequins e criar grupamentos especiais de polícia para bares. Ou da violência nas zonas de prostituição e criar unidades de polícia pacificadora da luz vermelha. Ou falar da violência nas favelas e criar uma unidade de políc, ops, essa já existe. A extrema violência não é um problema dos estádios, dos bares, das zonas, das favelas, embora tenda a ser mais aguda nesses lugares. Mas isso é só porque, ao contrário das ruas dos bairros nobres, cercadas de cancelas, seguranças particulares, câmeras de vigilância e toda a cordial atenção prestada pelo aparato estatal, são sonegados sistematicamente os mesmos cuidados à periferia e a todo e qualquer lugar frequentado por pobres pretos ou quase brancos quase pretos de tão pobres.

Ainda lembro do tom de espanto que permeava as matérias telejornalísticas no começo dos anos 90 pela violência urbana causada pelos cartéis na Colômbia. Na Colômbia, a coisa tava feia...

No mesmo ano em que Rodrigo de Gasperi morreu num estádio, dezenas de presos foram trucidados pelas tropas de choque do estado de São Paulo na Casa de Detenção do Carandiru. 




No ano seguinte, em junho e agosto de 1993, outras dezenas foram massacrados na Candelária e em Vigário Geral, no Rio de Janeiro.


A ressaca da Guerra Fria, da hiperinflação, das seguidas crises econômicas, do projeto liberal dos anos 70/80, apertou o cinto nas periferias e bateu forte na cabeça do terceiro mundo. E uma das heranças mais macabras dos regimes militares foi o empoderamento dos trogloditas que executavam o plano de repressão no dia-a-dia e dos muitos boçais que lutavam do lado oposto da trincheira. A maioria deles, dos dois lados, está no poder hoje.

São 22 anos entre a morte de Rodrigo de Gasperi e a morte de Márcio Barreto de Toledo, de 34 anos, torcedor do Santos espancado por um grupo de torcedores do São Paulo na Zona Leste depois do clássico do último domingo. “22 anos e a gente ainda não resolveu a questão da violência nos estádios”, ouvi na TV.

Um dia depois da morte do torcedor, a PM carioca matou de porrada um adolescente em Madureira. Ele não estava torcendo para ninguém, estava sem camisa andando de moto com um amigo. Talvez tenham se confundido, queriam matar outro e acabaram pegando o moleque errado.

São pobres também, os PMs que mataram o moleque.

Ontem, deram 50 tiros de fuzil num PM que dirigia um carro na periferia de Niterói. São pobres matando pobres, uma guerra deflagrada há décadas na periferia, e é ótimo que os pobres se matem uns aos outros. Sempre que um pobre acredita que outro pobre é quem o oprime, a alma de um milionário é encomendada ao Céu. Pobres se matando é algo que deve contribuir para reduzir a sensação de medo nas grandes cidades e, ao mesmo tempo, regular a superpopulação. Talvez um dia falte gente para gritar nos estádios, limpar latrinas e fazer a segurança particular das ruas dos bairros nobres. Mas aí sempre existirão bolivianos, angolanos e haitianos. E, quando eles começarem a ser muitos, mais cedo ou mais tarde acabarão se matando nas ruas das periferias. Ou nos estádios de futebol.

Imagina na Copa?

Sempre fui e continuo sendo a favor da Copa e da construção de estádios enormes, modernos e tudo mais. O Brasil é uma das cinco maiores economias mundiais e não acho justo enfiar o povo que mais joga e mais entende de futebol no mundo em galinheiros de concreto. Não é justo conceder financiamento para hotéis de luxo, portos, aeroportos, bancos, fazendas de gado e soja, e negar crédito para que se construa estádios para os brasileiros assistirem decentemente às partidas de futebol. Seria mais uma marca de péssima distribuição de renda. Apesar de que o preço dos ingressos praticado nos novos estádios deixa cada vez mais claro que não foi bem para eles que as reformas foram feitas. Em todo caso, acho difícil que morra sequer um passarinho dentro de um estádio durante a Copa do Mundo. Depois, não sei.






Pelo sim, pelo não, melhor acender uma vela. Pelo Haiti.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

E agora?

Paulo André conquistou cinco títulos pelo Timão
(Daniel Augusto Jr/Ag. Corinthians)

Paulo André foi embora. A ausência em campo será sensível. Era líder do time campeão do mundo em 2012, égide da solidez defensiva que transformou o Corinthians no clube mais regular e temido do país. Mais uma peça que se vai, após um ano de meio de insucessos. A coletividade que sobrepôs a tendência de alicerçar equipes em grandes craques fica no passado, nos pôsteres de Tóquio.

Nos bastidores, a falta que Paulo André fará é inexorável. Um articulador que mobilizou os jogadores de futebol para pedir melhorias para a classe fará muita falta. O curioso é a saída do zagueiro para a China logo após as ameaças de torcedores no CT corintiano e de uma tentativa de greve frustrada depois do episódio de violência.

Os atos liderados pelo Bom Senso chamaram a atenção da opinião pública para os buracos do futebol verde e amarelo (metaforicamente, mas também objetivamente). Foi o mais recente movimento esperançoso no esporte brasileiro de uma série de momentos que despertaram euforia nos torcedores.Sequência essa que começou logo após o anúncio da Fifa sobre o mundial, em 2007.

Tínhamos Forlán, Seedorf, Ronaldo e Neymar. Esperávamos por estádios e pelo mundo, que viria conhecer o Brasil na Copa do Mundo. Técnica, tática e emocionalmente, estávamos próximos do avanço. Houve a proposta de derrubar o monopólio da rede de comunicação que detém os direitos de exibição do futebol brasileiro.

Tudo isso já se foi. Optaram pela comodidade e pela inércia. Até as cotas de televisão do novo acordo com a velha emissora já se esvaíram nas mãos dos cartolas, fato que explica a falta de contratações na janela desse ano e, por conseguinte, a fragilidade dos clubes brasileiros para essa a temporada.

Ficou a incerteza sobre o futuro prometido por políticos e dirigentes esportivos. Quanto ao Bom Senso, o questionamento é ainda mais intenso. Seria a mobilização forte o bastante para prosseguir sem Paulo André?
                                                                                                 

Por Helcio Herbert Neto.                                                                 
                                                                                                            

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Crepúsculo dos Ídolos


É difícil, quase impossível, desvincular-se do tempo-espaço para fazer uma análise fria de qualquer fato. Por isso é tão raro que tenhamos a percepção de que algo histórico está a acontecer diante de nossos olhos, sob nossos braços. Muitas vezes é necessário que haja um tempo de maturação do pensamento – individual e coletivo -; que os dias absorvam pré-conceitos, que os meses borrem o sentido de realidade e que, por fim, os anos revertam expectativas - agindo como iconoclastas ou endeusando marginalizados de outrora - e reconstruam narrativas.

Leonardo Moura está apenas a um jogo (e deve ser um Flamengo e Vasco) do seu 467º com a camisa do Flamengo, o que o inclui, isoladamente, entre os dez jogadores que mais atuaram pelo Rubro-Negro em toda a história. Ao lado de Zico, Júnior, Adílio, Andrade, e à frente de lendas como Joel, Tita, Dida, Rondinelli e de outro lateral direito: Leandro, o “Peixe Frito”.

Perto de completar uma década de Flamengo, Léo Moura já foi campeão Brasileiro, bicampeão da Copa do Brasil, tetracampeão estadual e ajudou a livrar o time do rebaixamento em pelo menos três ocasiões graves.

Léo estava lá quando a bomba explodiu na Gávea e quando o capitão do time foi preso por assassinato. Estava lá nas inúmeras vezes em que o muro amanheceu pichado, em que viraram as faixas de cabeça para baixo no estádio e em que não havia um toque sequer na bola sem uma vaia acompanhando da arquibancada. Léo estava lá treinando e jogando enquanto Adriano faltava, e Juan arranjava briga; enquanto Tardelli e Marcinho promoviam orgias em Minas Gerais e enquanto Ronaldinho aparecia atrasado, ainda sob efeito da vodka com energético da noite anterior.  

Léo Moura não é santo e já errou muitas vezes, com toda certeza, dentro e fora de campo. Eu mesmo, confesso, já o acusei de corpo mole, de displicência e de ser mau marcador. Outro dia, porém, vendo um jogo do Flamengo– não lembro qual – acompanhado por dois vascaínos, tomei as dores do Léo Moura quando começaram a criticá-lo (aquela coisa do “é meu e só eu posso falar mal”) e a contestar sua condição de ídolo. Pensei.

No dia seguinte da derrota por 3 a 0 no FlaFlu, ele postou uma foto na piscina no Instagram e foi xingado por alguns torcedores. Após a derrota para o León, ouvi duas vezes um “O Léo Moura ein...não sei não” de pessoas próximas. 

Nove anos de Flamengo – grande parte do tempo em crise. Quatrocentos e sessenta e seis jogos representando 35 milhões de torcedores. 

Eu não quero corroborar com a hipocrisia e nem ser acusado, mais tarde, de nostálgico. Esperar ele se aposentar – com ou sem Libertadores – e eu ser questionado pelos meus filhos e netos para admitir, para eles e para mim mesmo, que o Léo Moura era foda. O tempo não precisa destilar seu veneno ou aplicar seu antídoto. Ele é foda, e essa é a História. 



Por Beto Passeri.






segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Os homens da bancada


Enquanto o calor implacável chicoteia a calçada e seus transeuntes, o potente e silencioso ar condicionado dá uma trégua aos privilegiados daquele edifício encravado num dos bairros nobres da cidade. Uma mão a mais de maquiagem, um toque no cabelo, uma ajeitada no paletó e estará tudo pronto. O roteiro chega atrasado, nas mãos de um jovem esbaforido e sem compostura – por sorte, ele não faz parte do show.

Os convidados já estão à mesa, igualmente impecáveis; iluminados, enquadrados e focados com perfeição. Cumprimento comedido a todos, quase imperceptível, e o lugar de destaque é tomado. Silêncio absoluto, a tensão que os anos nunca amenizam, monitor aceso, a constrangedora encenação de uma conversa empolgante interrompida e... Olá, telespectadores!

Há tipos distintos na bancada, e distintos também são os motivos pelos quais estão ali, esperando a deixa para emitir opiniões: antidepressivos e cocaína, dinheiro, vontade de aparecer ou a convicção inabalável de que aquilo que dizem tem, de fato, imenso valor social. São jornalistas, pois.  São a grande mídia, ora. Mídia (de “meio”) entre sociedade e sociedade.

Chegaram a um consenso, como sempre precisam chegar, ainda que cenograficamente, afinal estão na TV. Falavam de futebol, de violência nos estádios, e entenderam que a culpa era das torcidas organizadas. A culpa de tudo ou quase tudo de ruim. Fizeram até uma enquete, e 80% das pessoas concordaram.  Era compreensível, pois escutavam o que as confortava. Precisavam de um vilão, um símbolo, uma cabeça. E os homens da bancada, do ar condicionado e da maquiagem entregavam de bandeja. A reflexão consome tempo e pode ferir o espaço publicitário – nem pensar. A discussão pode gerar muito desconforto. O senso comum é sempre a saída mais fácil para quem está com minutos contatos e um ponto eletrônico em cada ouvido.

Os créditos sobem na tela, as luzes se apagam e eles precisam encenar aquela conversa novamente. Fim. Já podem relaxar, afrouxar o nó da gravata e os músculos do rosto. Precisam descansar, pois amanhã será um dia cheio, de jogo importante e estádio lotado.

Elogiarão o espetáculo a cada cinco minutos, aumentarão o som dos microfones para que os gritos fiquem mais audíveis na TV, darão zoom nas bandeiras e no mosaico e se arrepiarão quando a bola na rede fizer tremer o chão embaixo de seus pés e sugar a energia de suas almas. Mas não se darão conta. Como não se dão conta de que a rua está limpa porque alguém varreu, de que a comida está feita porque alguém cozinhou e de que o programa está fechado porque alguém suou.

Já está quase tudo apagado quando o jovem esbaforido e sem compostura acaba de recolher os roteiros e tirar os equipamentos da tomada. Sente muita fome e alguma coisa entre raiva e frustração – por sorte, ele não faz parte do show.


P.S: Nestes tempos de ignorância e má interpretação cada vez mais agudas, quero deixar claro que não faço parte de nenhuma torcida organizada e desprezo absolutamente qualquer forma de violência (nos estádios e fora deles). Bem como desprezo generalizações, preconceito, empobrecimento de discurso e jornalismo mal feito, coisas que considero igualmente violentas.




Por Beto Passeri.













sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

No dia que eu morri


Um estrondo e fim. Mentira, ainda foi possível ver uma labareda envolvendo a minha cabeça. Nem deu tempo para me desesperar. Já não era mais eu. Tudo em volta não tinha a configuração usual, o mundo amistoso virou, de uma hora para a outra, uma relva tropical de animais hostis. Na atitude pueril de quem crê, o paraíso era bem diferente. Pensei em festa, como sempre foram os dia felizes. Pensava em futebol, em comunhão de povos. Os sete anos seriam longos o bastante para mudarmos. E o que me ocorre é que foi na carne da esperança que esse verme se criou. 

De todas as coisas que cresceram desde lá, a maior foi a expectativa. De súbito, passamos do ceticismo do alcoólatra comendo torresmo no botequim para o ativismo de quem gasta a sola do tênis em manifestações violentas. A mudança já estava na rua: com os protestos, o trânsito ficou mais intenso. Engarrafamentos. Não pensávamos nisso em 2007. Vislumbrávamos estádios em dias de sol, uma taça que reluz. Éramos menos acintosos. Menos presunçosos, pois. Índios que sambavam e bebiam caipirinha. Quisemos ser grandes e aumentamos nossa pequenez. 

Foi da megalomania que tudo surgiu. Como um toxicômano tropeçante, éramos belos no espelho e doentes aos olhos dos sóbrios. Pusemos um milhão de crianças de prontidão, rasgamos as avenidas Paulista e Presidente Vargas pelo amanhã frutífero. Conseguiríamos, somos o centro do mundo. Mais prepotência, mais elegância. Trajamos preto e quebramos símbolos. Matávamos, aos poucos, a nós mesmos. No vício. Hoje vi todos nós marchando, como eles. Em fúria, como eles. Somos ele, apesar da trincheira que nos divide. 

Rudes e impacientes, íamos, sempre após os afazeres, beijar nossas esposas e ver televisão. Todos sós. Pelo menos acabou. Limpo a testa com a mão direita e noto que o que escorre da minha têmpora não é o sangue e sim o azeite viscoso da sudorese. Meu nome não o mesmo que aparece nas manchetes dos portais da internet. Aliás, ele ainda luta pela vida. Eu não. Não desfilo minha luta nesse passeio público, onde os fortes exibem um banquete na frente de pobres raquíticos, bondosos. Quero somente o silêncio, para dormir.

Por Helcio Herbert Neto.