segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Os homens da bancada


Enquanto o calor implacável chicoteia a calçada e seus transeuntes, o potente e silencioso ar condicionado dá uma trégua aos privilegiados daquele edifício encravado num dos bairros nobres da cidade. Uma mão a mais de maquiagem, um toque no cabelo, uma ajeitada no paletó e estará tudo pronto. O roteiro chega atrasado, nas mãos de um jovem esbaforido e sem compostura – por sorte, ele não faz parte do show.

Os convidados já estão à mesa, igualmente impecáveis; iluminados, enquadrados e focados com perfeição. Cumprimento comedido a todos, quase imperceptível, e o lugar de destaque é tomado. Silêncio absoluto, a tensão que os anos nunca amenizam, monitor aceso, a constrangedora encenação de uma conversa empolgante interrompida e... Olá, telespectadores!

Há tipos distintos na bancada, e distintos também são os motivos pelos quais estão ali, esperando a deixa para emitir opiniões: antidepressivos e cocaína, dinheiro, vontade de aparecer ou a convicção inabalável de que aquilo que dizem tem, de fato, imenso valor social. São jornalistas, pois.  São a grande mídia, ora. Mídia (de “meio”) entre sociedade e sociedade.

Chegaram a um consenso, como sempre precisam chegar, ainda que cenograficamente, afinal estão na TV. Falavam de futebol, de violência nos estádios, e entenderam que a culpa era das torcidas organizadas. A culpa de tudo ou quase tudo de ruim. Fizeram até uma enquete, e 80% das pessoas concordaram.  Era compreensível, pois escutavam o que as confortava. Precisavam de um vilão, um símbolo, uma cabeça. E os homens da bancada, do ar condicionado e da maquiagem entregavam de bandeja. A reflexão consome tempo e pode ferir o espaço publicitário – nem pensar. A discussão pode gerar muito desconforto. O senso comum é sempre a saída mais fácil para quem está com minutos contatos e um ponto eletrônico em cada ouvido.

Os créditos sobem na tela, as luzes se apagam e eles precisam encenar aquela conversa novamente. Fim. Já podem relaxar, afrouxar o nó da gravata e os músculos do rosto. Precisam descansar, pois amanhã será um dia cheio, de jogo importante e estádio lotado.

Elogiarão o espetáculo a cada cinco minutos, aumentarão o som dos microfones para que os gritos fiquem mais audíveis na TV, darão zoom nas bandeiras e no mosaico e se arrepiarão quando a bola na rede fizer tremer o chão embaixo de seus pés e sugar a energia de suas almas. Mas não se darão conta. Como não se dão conta de que a rua está limpa porque alguém varreu, de que a comida está feita porque alguém cozinhou e de que o programa está fechado porque alguém suou.

Já está quase tudo apagado quando o jovem esbaforido e sem compostura acaba de recolher os roteiros e tirar os equipamentos da tomada. Sente muita fome e alguma coisa entre raiva e frustração – por sorte, ele não faz parte do show.


P.S: Nestes tempos de ignorância e má interpretação cada vez mais agudas, quero deixar claro que não faço parte de nenhuma torcida organizada e desprezo absolutamente qualquer forma de violência (nos estádios e fora deles). Bem como desprezo generalizações, preconceito, empobrecimento de discurso e jornalismo mal feito, coisas que considero igualmente violentas.




Por Beto Passeri.













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