terça-feira, 2 de outubro de 2012

O sindicato


Charge: Rodrigo Chinellatto
    
Não lembro bem como aconteceu, mas na última sexta-feira eu fui chamado para jogar um futebol do sindicato dos servidores da UFF, em Niterói. Campo de 11, à beira da Baía, gramado impecável, árbitro, uniforme, 45 minutos cada tempo, e tudo de graça. Não é sempre que a sorte sorri desse jeito e eu, mesmo batendo ponto às 19h no trabalho, tinha que dar um jeito de estar me aquecendo às 16h.

Compensei as horas ao longo da semana – o que não fazemos? – saí cedo e, ainda assim, o tempo me traiu. Peguei a barca das 15h20, cheguei do outro lado da Guanabara vinte e poucos minutos depois, e corri o que eu não aguentaria correr mais tarde só para estar em campo antes do apito inicial. Almejava uma vaga entre os titulares.

Avistei o campo, fui apreciando o que me tinha sido prometido, mas notei que não havia ninguém além de dois velhos mais pra lá do que pra cá sentados na linha lateral. Cumprimentei-os, e fui assistindo a chegada paquidérmica do resto do quórum. A maioria coroa, na faixa dos 50, quando não velhos, todos bem castigados pelos anos de labuta. Humildes, lançavam-me um sorrisinho sem graça de boas vindas, mas não escondiam o desconforto com a minha presença.

Uma espécie de líder se destacou dos demais, distribuindo as camisas sem titubear e apressando ferozmente os que ainda calçavam as chuteiras. Sequer olhou para mim.
- O pessoal do sindicato tem que jogar – cochichou um rapaz mais novo que recebia um dos uniformes. –Eu venho há dois anos já; espera que você entra.

A bola rolou, quer dizer, tentou rolar. Um futebol terrível foi jogado durante 45 minutos que pareceram durar quatro horas, ali, vitimado pelo vento gelado do fim de tarde; com os pés formigando de vontade, mas brochados pela constatação sóbria de que eu não deveria ter feito o sacrifício.

A tortura do banco de reservas teve fim, mas a angústia não. Jorge, o líder sisudo, efetuou algumas trocas durante o intervalo - dessa vez até chegou a me espiar por cima do ombro -, mas passou longe de cogitar a minha entrada. “Pato Rouco”, uma das lendas da pelada, e que passara o primeiro tempo inteiro pregado na linha lateral, bêbado, conversando com os suplentes, pediu para sair. Talvez eu entrasse, não tivessem os outros protestado com tanta veemência pelo ‘fico’ do Pato.
- Entra aí, é mais fácil eu voltar no meio do segundo tempo do que você – e entregou-me a camisa um tal ‘Índio’, figura que, depois fiquei sabendo, contava os gols em peladas desde os 11 anos de idade. Segundo suas contas, eram mais de dois mil e trezentos.

Achei que seria fácil parecer gênio pelo que havia observado no primeiro tempo, mas fui pego totalmente de surpresa. Na primeira vez em que entrei num campo com aquelas dimensões, simplesmente não me encontrei no tempo e no espaço. Errei todos os passes, pois a bola prendia na grama, não soube marcar nem atacar, ouvi umas três vezes um “Porra, viadinho!”, e me cansei com 25 minutos de jogo. Meu time acabou vencendo graças a dois golaços de falta de um cara talentoso e eu, no fim das contas, acabei não sendo responsabilizado pelas próprias lambanças.

Depois de uma chuveirada revigorante, já estava até aliviado pelo saldo final do futebol. Na saída do vestiário, vi Jorge carregando dois sacos lotados de uniformes. Ele ainda ia pegar um ônibus para São Gonçalo, então me dispus a ajudá-lo diante de alguma resistência.
- Você lava os uniformes em casa? – perguntei.
- Lavo, lavo um por um, à mão. À mão porque se puser na máquina descolore e desfia tudo – completou.

Diante da minha surpresa, Jorge, agora nem tão carrancudo, se antecipou.
- Meu filho, a gente joga esse futebol desde 1987. Quando o país nem era democrático, a pelada já era. Mudou tudo de lá pra cá, morreram colegas do nosso grupo, a UFF não é a mesma, a gente já não consegue correr muito, mas o futebol do sindicato não pode acabar.
- De 87 para cá vocês nunca deixaram de jogar?
- Nunca. Completamos vinte e cinco anos agora em junho. Tirando feriado, nunca perdemos uma sexta-feira. Já perdi muita mulher por causa desse futebol também – e riu, num misto de timidez e orgulho.

Quanto mais eu me surpreendia e me interessava pelas histórias, mais ele se animava a contá-las. E assim foi até o terminal de ônibus, quando ele fez sinal para um dos carros e pegou as bolsas úmidas da minha mão.
- Não diria mesmo, mas você tem jeito para pegar no pesado, ein? – e deu uma longa gargalhada, exibindo a carência de alguns dentes.

Despedi-me dele, dei as costas e sentei no primeiro bar digno daquela tarde. Lá, tentei pensar em como pedir dez minutos de adiantamento na semana seguinte. É que na próxima sexta eu preciso pegar a barca das 15h para dar tempo de pendurar as redes.



Por Beto Passeri.

Nenhum comentário:

Postar um comentário