sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Segunda, às oito

(Divulgação/Beth Santos)

Por oito vezes o ponteiro havia se movido desde a meia-noite e mais de oito eram as gotas que encharcavam a camisa social nas bases do braço. Talvez esse fosse o único incômodo maior do que a infinidade de membros que ocupavam o mesmo espaço naquele coletivo fétido e lotado. Imagens da festa de ontem oscilavam por sua visão periférica, seja nas manchetes efusivas da imprensa pelega das mãos dos poucos sentados naquele compacto de gente, seja nos fugazes cartazes e placas que poluíram a vista da cidade nos últimos meses dissipados pela janela. Pobre cidade, que vive de vistoso cenário e trata pessoas como elementos de figuração.

Além do mártir de toda manhã, estava ali um dissonante. O único descontente, excetuando a velha que reclamava da parada perdida. O desdentado, pregado no vidro que mal conseguia expandir e contrair o diafragma castigado pelo peso da estiva. O aluno que, além de mal-alimentado, ainda chegará atrasado ao colégio primário. O motorista, ou cobrador, ou o seja-lá-qual-denominação que faz tudo dentro daquele ônibus do inferno. Acredite, o representante do digníssima raça ariana do Posto Nove que tirou o carro da garagem só para percorrer aquele engarrafado quarteirão também não parecia satisfeito.

Então diga, Deus, se tu mesmo existes, se há razão palpável para toda essa gente ratificar a realidade caótica que é pão nosso de todo dia. Se houver, mande carta, e-mail, talvez, porque ele nem domina nem possui a linguagem dos telefones móveis espertos que oferecem cada vez mais canais e minguam com as já escassas significâncias. Diga e repita, porque o rito remoído de remorso de toda manhã irá continuar. E esse barulho ensurdecedor. Só a ele incomoda?

Devem ser os arcos coloridos que o objeto urbano vai receber no futuro, ou mesmo a bola que vai rolar por um antigo palco popular. Faz sentido. Ou a limpeza que joga para o subúrbio triste, para rebaixada do estado e para o oeste da Avenida os detritos humanos insignificantes. Detritos que retornam, por transporte  eficiente de carroça, todos os dias, para o centro e para o mundo encantado da brisa sulista. Mas não ficam. Pendulam no fim da labuta, às seis, e desaparecem como em um toque de descarga.

O bar virou restaurante, a bola agora é alugada em grama sintética, e o funk é charme e aparece na novela das dez. Esvaziam o significado e tudo que lhe envolve é uma maquete leve, de isopor. Tão maleável que pode ser vendida para qualquer que deixar trocado na indústria hoteleira ou prometer gerar meia-dúzia de empregos para os despejados, removidos ou excluídos. Miséria é moeda de troca por essas terras, acredite.  Idéias são descartáveis, perene é, somente, a projeção de município do futuro que é tomada por pílulas, por todos que abrem a cartela pressionado o botão vermelho do controle remoto, quantas vezes o medicado quiser.

O aceno de mudança é silenciado em primeiro turno. Estão todos satisfeitos, embora mutilados. A utopia vira moda, ridicularizada pela classe medíocre que finge viver na Europa, mas gasta as solas nas vias esburacadas do porão do América Latina. Temos dinheiro sim, mas não está conosco. Segue nos bancos dos empreiteiros ou nas empreitadas dos banqueiros, longe do alerta sonoro da parada solicitada que acaba de ser soado. E ignorado, após flagrado o atraso do relógio do condutor da máquina com rodas que carrega uma multidão parda, insossa e cheia de olheiras.

É sua vez. Já deu o dinheiro para quem sempre se dá bem, é hora de garantir o frango pálido do prato de amanhã. Para sua segurança, este ônibus possui um dispositivo que só permite o veículo andar com as portas fechadas. Tropeça e cai. Aqui fora estão todos bem, também. Farto de semideuses, resta-lhe a convicção de que, nesse programa de auditório que é a vida cortesã, somente ele é o errado.

Por Helcio Herbert Neto                                                                              

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