Já passava das cinco, mas o horário de verão forçava um sol
incômodo por entre a cortina desbotada da sala. Beto, o irmão mais novo, e
Bruno, o mais velho, apertavam os olhos para conseguir enxergar a tela da TV
minada pelo reflexo. Era janeiro de 2000, o mundo não tinha acabado como alguns
anunciaram, e fazia um calor infernal naquela terça-feira pachorrenta de férias
escolares no subúrbio do Rio.
O ventilador velho encontrava forças para fazer ecoar um tac-tac irritante no ambiente graças à
concentração muda no Brasil e Argentina virtual. Beto, oito anos a menos nas
costas, fora autorizado a jogar com a simpática seleção canarinho; Bruno
escolhera a Argentina porque, naquela época, não sobravam muitas opções.
Gabriel Batistuta havia anotado o único gol da partida. Sabiam se tratar de
Batistuta por causa da camisa 9, do cabelo comprido e do chute forte, pois o
jogo era todo em japonês e decifrável somente por tentativa e erro. Era Winning
Eleven 4, para
Playstation 1, ambos adquiridos muito a contragosto por Beto um mês antes, em
seu aniversário de 8 anos. O caçula, acostumado a jogar Nintendo 64 na casa dos
amigos, queria um videogame igual. Bruno, mais velho e mais esperto, insistiu que a plataforma da Sony com sua tecnologia de CDs era mais avançada e mais divertida.
No ano seguinte, já absolutamente viciados, podiam
desfrutar do jogo totalmente em português e com times brasileiros graças ao
fenômeno da pirataria. Os camelôs ofereciam dezenas de mutações do jogo
original, mas raramente alguma prestava, então escolhiam três ou quatro capas
ao acaso e rezavam para ter acertado em alguma. Não exigiam muito, só
precisavam de um Flamengo e Vasco digno (ambos eram rubro-negros, mas Bruno
também cedia neste ponto). Era Flamengo, isento dos problemas internos da
época, de Júlio César, Gamarra, Juan, Petkovic, Adriano e Edílson contra o
Vasco de Júnior Baiano, Felipe, Juninhos – Pernambucano e Paulista -, Pedrinho,
Viola e Romário.
Beto era uma espécie de fenômeno precoce, tinha uma
habilidade assustadora com os controles do jogo, mas pecava na indisciplina
tática e na falta de preparo psicológico - sim, era preciso. Bruno apreciava uma
retranca, um futebol frequentemente menos vistoso, mas indiscutivelmente eficiente.
E qualquer 1 a 0 era suficiente para fazer surgir as marchinhas de carnaval
adaptadas e danças desengonçadas ao fim da partida. O caçula tinha o sangue nos
olhos, mas engolia aquilo e esperava pela forra. Nunca desligou o videogame de
súbito ou se recusou a jogar; de uma forma ou de outra, aprendeu que a culpa
pelo fracasso era somente sua, ainda que resmungasse contra o árbitro virtual
ou qualquer outra coisa sem cabimento. Arrastava os pés para o beliche de cima,
e deitava com os olhos fixos a meio metro do teto, refazendo os lances na
cabeça, ávido pela chance de se recuperar no dia seguinte.
Naquela época, a semana se resumia ao ensino fundamental,
que tirava de letra, aos desenhos animados e, acima de tudo, ao Winning Eleven.
Quando saltava da van, na esquina de casa, já podia sentir o cheiro de
competição – o videogame já estaria ligado o aguardando. Apesar de quase
obsessivos, os dois nunca brigaram, muito pelo contrário. A diferença de idade impunha um respeito enorme – admiração
pelo lado mais forte, zelo pelo lado mais fraco. E, com música que criança não
ouve, Bruno ia moldando o irmão mais novo, tomando cuidado para nele não
respingar suas angústias. Era uma osmose cultural, ou uma espécie de artesanato de
valores pessoais.
Beto saiu da infância, e com o Playsation 2 e um Winning
Eleven drasticamente melhor, trouxe consigo dos EUA a vontade de entender
absolutamente tudo. O irmão o esperava, também mais maduro, disposto a instalar
o novo tesão na sala e a lhe contar o que sabia sobre o mundo. A distância entre
eles já não era tão abissal, e a busca por respostas, o florescimento da
sexualidade e a descoberta da escrita por parte do irmão mais novo, de um modo
engraçado, casava com a busca irrestrita pelos prazeres da juventude de um
jovem aflito, recém ingressado na faculdade de Jornalismo.
Chegavam a jogar dois ou três campeonatos de quatro horas de duração num dia. Beto não mais torcia o nariz quando Bruno se lembrava de um bom
jogo na TV e interrompia o vício – o caçula aprendera a gostar e até já entendia bem do
futebol real. Varavam noites, extasiados, e ouviam os socos na parede desferidos
pela irmã do meio que não conseguia dormir. Certa vez, lá pelas quatro da
manhã, Nero, o até então desconhecido vizinho do andar debaixo, esmurrou a
porta e prometeu chamar a polícia caso a gritaria não cessasse.
Entreolharam-se, complacentes, mas dali a pouco a bola cruzou rasante a área
de um dos dois e "UUUUUUUUH!!". Era involuntário.
De sono pesado, a mãe só tomava conhecimento do “circo”,
como costumava dizer, no café da manhã, totalmente estarrecida. Os dois riam, não tinham
mais o que fazer, e apontavam disfarçadamente com o queixo na direção da sala,
gesto sutil para “uma partidinha” antes da chatice do dia a dia.
Cada vez era mais raro que Bruno passasse os fins de semana
em casa, e não era estranho que escapasse algumas terças e quintas também. Beto
até conseguia compreender, mas se contorcia por dentro. Desmilinguido na cama, não
sabia se queria que chegasse a hora de sua vida boêmia também, ou simplesmente
que o irmão mais velho abdicasse àquilo tudo para jogar e ficar conversando
sobre coisas alheias. Pelo caçula, agora que o videogame havia migrado para o
quarto acompanhado de uma TV melhor, poderiam passar os sete dias da semana ali
dentro, rindo, cantando músicas de torcida e ignorando todo o resto. A escola
tornara-se chata, ainda não tinha muita sorte com as meninas que gostava, e sua
paixão passou a ser ler os textos de Bruno e tentar fazer parecido, até superá-los, como
já conseguia fazer com bastante frequência no futebol virtual.
Um dia, o que já se anunciava veladamente aconteceu, e o
irmão mais velho, um tanto quanto afoito e apaixonado, deixou o ninho, saiu de
casa. Tão vorazmente partiu que não houve muito tempo para despedidas e nem
organização para exportar seu armário. Suas roupas ficaram ali, amarrotadas
como sempre estiveram, esperando o dono, bem como as perguntas que Beto ainda
tinha a fazer. O irmão mais novo chorou, chorou muito, e chorou tomado por uma tristeza que
nunca havia conhecido, mesmo tendo lembranças da traumática separação dos pais.
Sem Bruno lá, foi obrigado a escrever sozinho para preencher o vazio.
Ligou o videogame e, pela primeira vez, foi o jogador
número 1. Ali, naquele menu, entendeu que Bruno, mesmo sem querer, lhe guiara
novamente. Lembrou-se de todos os campeonatos jogados, de Nirvana, Pearl Jam,
Caetano, Gil, João Gilberto, da paixão incondicional pelo Flamengo, de García
Márquez, Cortázar, Kerouac, Bukowski, Tarantino, Kubrick, e se sentiu arrogantemente
um ser superior a toda humanidade que não dividira o quarto com seu irmão.
Percebeu, então, que seu último aprendizado era o maior de todos; bruto, desmedido
e, por isso mesmo, não vinha acompanhado de novos conselhos. A partir dali
seria Beto, sozinho, tendo que se equilibrar no desvario do dia a dia, no desatino de simplesmente estar no mundo. Claro, doses homeopáticas de Winning Eleven nas datas comemorativas o acompanhariam até que conseguisse alçar voo sozinho. E depois também.
*Hoje Bruno completa 29 anos, e esse texto é uma homenagem de seu irmão, a um mês e meio dos 21. Um parabéns de seu rival implacável e eterno irmão caçula,
Cara, não tinha lido tudo. Espetacular, muito bom. Aqui é teu lugar em qualquer lugar do mundo, não esqueça desse fundo preto e do silêncio que é gritar no abismo. Um abraço
ResponderExcluirHHN