domingo, 28 de outubro de 2012

O que aprendi jogando Winning Eleven



Já passava das cinco, mas o horário de verão forçava um sol incômodo por entre a cortina desbotada da sala. Beto, o irmão mais novo, e Bruno, o mais velho, apertavam os olhos para conseguir enxergar a tela da TV minada pelo reflexo. Era janeiro de 2000, o mundo não tinha acabado como alguns anunciaram, e fazia um calor infernal naquela terça-feira pachorrenta de férias escolares no subúrbio do Rio.

O ventilador velho encontrava forças para fazer ecoar um tac-tac irritante no ambiente graças à concentração muda no Brasil e Argentina virtual. Beto, oito anos a menos nas costas, fora autorizado a jogar com a simpática seleção canarinho; Bruno escolhera a Argentina porque, naquela época, não sobravam muitas opções. Gabriel Batistuta havia anotado o único gol da partida. Sabiam se tratar de Batistuta por causa da camisa 9, do cabelo comprido e do chute forte, pois o jogo era todo em japonês e decifrável somente por tentativa e erro. Era Winning Eleven 4, para Playstation 1, ambos adquiridos muito a contragosto por Beto um mês antes, em seu aniversário de 8 anos. O caçula, acostumado a jogar Nintendo 64 na casa dos amigos, queria um videogame igual. Bruno, mais velho e mais esperto, insistiu que a plataforma da Sony com sua tecnologia de CDs era mais avançada e mais divertida.

No ano seguinte, já absolutamente viciados, podiam desfrutar do jogo totalmente em português e com times brasileiros graças ao fenômeno da pirataria. Os camelôs ofereciam dezenas de mutações do jogo original, mas raramente alguma prestava, então escolhiam três ou quatro capas ao acaso e rezavam para ter acertado em alguma. Não exigiam muito, só precisavam de um Flamengo e Vasco digno (ambos eram rubro-negros, mas Bruno também cedia neste ponto). Era Flamengo, isento dos problemas internos da época, de Júlio César, Gamarra, Juan, Petkovic, Adriano e Edílson contra o Vasco de Júnior Baiano, Felipe, Juninhos – Pernambucano e Paulista -, Pedrinho, Viola e Romário.

Beto era uma espécie de fenômeno precoce, tinha uma habilidade assustadora com os controles do jogo, mas pecava na indisciplina tática e na falta de preparo psicológico - sim, era preciso. Bruno apreciava uma retranca, um futebol frequentemente menos vistoso, mas indiscutivelmente eficiente. E qualquer 1 a 0 era suficiente para fazer surgir as marchinhas de carnaval adaptadas e danças desengonçadas ao fim da partida. O caçula tinha o sangue nos olhos, mas engolia aquilo e esperava pela forra. Nunca desligou o videogame de súbito ou se recusou a jogar; de uma forma ou de outra, aprendeu que a culpa pelo fracasso era somente sua, ainda que resmungasse contra o árbitro virtual ou qualquer outra coisa sem cabimento. Arrastava os pés para o beliche de cima, e deitava com os olhos fixos a meio metro do teto, refazendo os lances na cabeça, ávido pela chance de se recuperar no dia seguinte.

Naquela época, a semana se resumia ao ensino fundamental, que tirava de letra, aos desenhos animados e, acima de tudo, ao Winning Eleven. Quando saltava da van, na esquina de casa, já podia sentir o cheiro de competição – o videogame já estaria ligado o aguardando. Apesar de quase obsessivos, os dois nunca brigaram, muito pelo contrário. A diferença de idade impunha um respeito enorme – admiração pelo lado mais forte, zelo pelo lado mais fraco. E, com música que criança não ouve, Bruno ia moldando o irmão mais novo, tomando cuidado para nele não respingar suas angústias. Era uma osmose cultural, ou uma espécie de artesanato de valores pessoais.

Beto saiu da infância, e com o Playsation 2 e um Winning Eleven drasticamente melhor, trouxe consigo dos EUA a vontade de entender absolutamente tudo. O irmão o esperava, também mais maduro, disposto a instalar o novo tesão na sala e a lhe contar o que sabia sobre o mundo. A distância entre eles já não era tão abissal, e a busca por respostas, o florescimento da sexualidade e a descoberta da escrita por parte do irmão mais novo, de um modo engraçado, casava com a busca irrestrita pelos prazeres da juventude de um jovem aflito, recém ingressado na faculdade de Jornalismo.

Chegavam a jogar dois ou três campeonatos de quatro horas de duração num dia. Beto não mais torcia o nariz quando Bruno se lembrava de um bom jogo na TV e interrompia o vício – o caçula aprendera a gostar e até já entendia bem do futebol real. Varavam noites, extasiados, e ouviam os socos na parede desferidos pela irmã do meio que não conseguia dormir. Certa vez, lá pelas quatro da manhã, Nero, o até então desconhecido vizinho do andar debaixo, esmurrou a porta e prometeu chamar a polícia caso a gritaria não cessasse. Entreolharam-se, complacentes, mas dali a pouco a bola cruzou rasante a área de um dos dois e "UUUUUUUUH!!". Era involuntário.

De sono pesado, a mãe só tomava conhecimento do “circo”, como costumava dizer, no café da manhã, totalmente estarrecida. Os dois riam, não tinham mais o que fazer, e apontavam disfarçadamente com o queixo na direção da sala, gesto sutil para “uma partidinha” antes da chatice do dia a dia.

Cada vez era mais raro que Bruno passasse os fins de semana em casa, e não era estranho que escapasse algumas terças e quintas também. Beto até conseguia compreender, mas se contorcia por dentro. Desmilinguido na cama, não sabia se queria que chegasse a hora de sua vida boêmia também, ou simplesmente que o irmão mais velho abdicasse àquilo tudo para jogar e ficar conversando sobre coisas alheias. Pelo caçula, agora que o videogame havia migrado para o quarto acompanhado de uma TV melhor, poderiam passar os sete dias da semana ali dentro, rindo, cantando músicas de torcida e ignorando todo o resto. A escola tornara-se chata, ainda não tinha muita sorte com as meninas que gostava, e sua paixão passou a ser ler os textos de Bruno e tentar fazer parecido, até superá-los, como já conseguia fazer com bastante frequência no futebol virtual.

Um dia, o que já se anunciava veladamente aconteceu, e o irmão mais velho, um tanto quanto afoito e apaixonado, deixou o ninho, saiu de casa. Tão vorazmente partiu que não houve muito tempo para despedidas e nem organização para exportar seu armário. Suas roupas ficaram ali, amarrotadas como sempre estiveram, esperando o dono, bem como as perguntas que Beto ainda tinha a fazer. O irmão mais novo chorou, chorou muito, e chorou tomado por uma tristeza que nunca havia conhecido, mesmo tendo lembranças da traumática separação dos pais. Sem Bruno lá, foi obrigado a escrever sozinho para preencher o vazio.

Ligou o videogame e, pela primeira vez, foi o jogador número 1. Ali, naquele menu, entendeu que Bruno, mesmo sem querer, lhe guiara novamente. Lembrou-se de todos os campeonatos jogados, de Nirvana, Pearl Jam, Caetano, Gil, João Gilberto, da paixão incondicional pelo Flamengo, de García Márquez, Cortázar, Kerouac, Bukowski, Tarantino, Kubrick, e se sentiu arrogantemente um ser superior a toda humanidade que não dividira o quarto com seu irmão. Percebeu, então, que seu último aprendizado era o maior de todos; bruto, desmedido e, por isso mesmo, não vinha acompanhado de novos conselhos. A partir dali seria Beto, sozinho, tendo que se equilibrar no desvario do dia a dia, no desatino de simplesmente estar no mundo. Claro, doses homeopáticas de Winning Eleven nas datas comemorativas o acompanhariam até que conseguisse alçar voo sozinho. E depois também.

*Hoje Bruno completa 29 anos, e esse texto é uma homenagem de seu irmão, a um mês e meio dos 21. Um parabéns de seu rival implacável e eterno irmão caçula,


por Beto Passeri.







Um comentário:

  1. Cara, não tinha lido tudo. Espetacular, muito bom. Aqui é teu lugar em qualquer lugar do mundo, não esqueça desse fundo preto e do silêncio que é gritar no abismo. Um abraço

    HHN

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