terça-feira, 5 de julho de 2011

Série Marginalizados: Uma Alma a vagar


Para ouvir ao som de: The Doors - The end.

Passos na sala. Já há tempos que tudo aconteceu, mas toda vez que entra a madrugada as lembranças voltam e eles se materializam ao seu lado. Quando de dia, consegue levar a vida, relembrar os momentos de sucesso, receber o afago daqueles que o viram exibir o seu futebol. Contudo, as vidas que se foram continuam tatuadas em sua pele.

No monótono engarrafamento da Ponte Rio-Niterói, um garoto afiava sua raiva. Morador de Niterói, o pequeno Edmundo fazia a travessia para se unir a outros tantos que tinham um sonho igual ao dele. Em São Cristóvão, no Campo do Vasco, o jovem atacante se misturava com a massa anômala de jovens que queriam viver de futebol.

Entretanto, nenhum deles tinha a ferocidade daquele rapaz vindo do outro lado da Baía de Guanabara. Por mais vontade que os outros meninos possuíssem, ninguém conseguiria se igualar ao atacante em campo. Enquanto todos corriam atrás da bola por prazer, Edmundo a perseguia por simples orgulho. Obviamente não demorou muito para que Edmundo se tornasse um jogador profissional.

Na chegada ao time principal, muitos tremeriam. Edmundo não. Ele simplesmente teve raiva. Uma tensão pistônica, quase irremediável, fez do escudo Vasco da Gama, de Queixadas e Dinamites, um símbolo provisório, quase invisível. Antes mesmo de se tornar um grande jogador, ele sumiu do Clube Cruzmaltino. O temperamento difícil e a habilidade inquestionável o levaram à buscar outra casa; começava uma peregrinação ansiosa e inquieta que nunca teria fim.

O velho sentimento provinciano que envolve o choque entre Rio e São Paulo era o estopim da insegurança. “Carioca, com uma lista de indisciplinas, quem é esse tal de Edmundo?”. Certo seria que a desconfiança seria a tônica do princípio da passagem do carioca pelo Palmeiras. E ninguém mais que o jogador saberia qual o antídoto para solucionar a descrença dos torcedores.

Ódio. Era essa a chave para levar o Palmeiras aos momentos de Glórias perdidas da década de setenta. Entre dúvidas e divididas, crises e polêmicas, o abstrato virou palpável: da promessa de jogador surge um indomável, incomparável e faminto animal silvestre. Em campo, tornou-se imprescindível para o antigo Palestra Itália de São Paulo. Foi o artífice dos campeonatos brasileiros de 1993 e 1994; com ele o verde da colônia italiana chegou ao topo.

Todavia, com tanta raiva, a vida se torna angustiante. Toda busca é vã, toda conquista é inglória. Novamente procurou por novas verdades em outros ares. Não obstante, não é sempre que a sorte sorri para aqueles que fogem dela. A inconseqüência e a falta de maturidade fizeram com que as noites do Animal nunca mais fossem as mesmas.

Veio ao maior rival do time que lhe abriu as portas; no centenário do Flamengo, Edmundo seria um dos astros. Ao lado de Romário e Sávio, era promessa de que os festejos do aniversário poderiam começar antes da hora. Contudo, entre choques de vaidade, noites movimentadas e discussões, aquele time pereceu. E o descontrole emocional daquele niteroiense foi um dos grandes motivos do fracasso.

Confuso e acuado, o Animal costumava percorrer os mais famosos pontos da noite carioca. Em busca de redenção e alívio, ele encontrava na madrugada uma companheira para seu bravio jeito de ser. Belos carros, mulheres e bebidas faziam com que ele esquecesse das responsabilidades e tarefas rotineiras dos mortais.

Foi quando em um desses lapsos de leviandade que sua vida mudou. Na noite glamurosa da Zona Sul, no dia dois de Dezembro, em um dos mais belos cenários cariocas, o atacante foi o protagonista de uma tragédia que envolveu seis pessoas. Após mais uma madrugada em seu universo próprio, de automóveis, dinheiro e amores, deu-se o fato: Edmundo bateu de carro na Lagoa Rodrigo de Freitas.

Atônito, não conseguia entender. Percebeu onde toda aquela raiva havia desaguado. Naqueles destroços e ferragens, via um pouco de si. Entretanto, sem dúvidas, o pior ainda estava por vir. Seu mundo caiu quando descobriu que três vidas haviam sido partidas por sua falta de discernimento. O acidente matou três pessoas e destruiu Edmundo.

Continuou a percorrer gramados do mundo, seguindo sua peregrinação. Foi grande, retribuiu o carinho dos vascaínos dando espetáculo no campeonato brasileiro de 1997 e levando a taça para São Januário. Contudo, de súbito, a torcida adversária costumava iniciar um coro para atordoar o craque. Vinha a alcunha que estigmatizava Edmundo: Assassino. E então, ele sucumbia, desaparecia em campo. A velha raiva incontrolável minguava e o animal virava dócil. Com a objetividade de um gato doméstico, ele perdia por completo sua eficiência.

E, cada vez mais, aquelas almas pesavam em suas costas. Correr com o peso de tantos desejos perdidos, tantas esperanças esvaídas era desumano. Toda vez que punha a cabeça no travesseiro, seja depois de um dia de treino, de jogo, ou de badalação, as lembranças retornavam. Toda vez que acordava estava mais fraco para combater o peso de enfrentar mais um dia.

Foi convocado sem ressalvas para a Copa de 98, embora emocionalmente abalado pelos anos anteriores. Durante a competição, foi apenas mais um. Compondo uma boa seleção, contentava-se em abrigar-se embaixo da cobertura do banco de reservas. Comemorava vitórias, aquecia a musculatura, treinava com os colegas. Mas tudo aquilo era pouco. Quem havia tido a oportunidade de ver aquele animal raivoso no princípio da carreira sabia que aquele era um simples vulto de tudo o que ele poderia ser.

Porém, mais uma oportunidade bateria-lhe a porta. Antes da final, a epilepsia de Ronaldo abrira uma vaga no time. Finalmente havia chegado sua vez? Tudo pronto para ser o maior, espantar fantasmas e angústias? Não. Subitamente, o técnico Zagallo escolhe pôr o camisa 9, apesar de seus problemas de saúde, no posto de titular. Como por interferência das vítimas do dia dois de dezembro, Edmundo foi mantido na reserva. Resignou-se com pouco tempo de jogo, um vice-campeonato mundial e a companhia etetrna daqueles que, por culpa dele, haviam partido.

Desde então desapareceu. Em mais dez anos de carreira, lutou para se manter erguido, combatendo. Vitórias, derrotas, dias e noites, o tempo passou e a distante maturidade chegou. No entanto, as lembranças nunca vão o deixar em paz. Será sempre uma sombra, uma alma a vagar. Naquele dia dois de dezembro, policias, médico e bombeiros erraram a conta. Na verdade, foram quatro as vítimas. Edmundo também partiu.

Por Helcio Herbert Neto.

2 comentários:

  1. Alô Helcio,bom dia!Seu texto é lindo e sem caricaturas sentimentalóides,conseguiu perceber o tamanho da tragédia que naquele dia,como vc mesmo disse,matou quatro pessoas e não três.Edmundo mudou muito desde então,sempre houve certa tristeza naquela gana toda mas depois daquilo o que se via,e ainda se vê,era uma dor sem par.Não gosto nem de pensar na destruição que a morte daqueles jovens causou às famílias,sou mãe e posso imaginar o que isto significa mas também sinto enorme pezar pelo inferno que para sempre acompanhará Edmundo.Foi mesmo um texto muito bonito.Abraços mil,Anna Kaum

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