quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Release me, Brasil



O calor nefasto acobertado pelo trágico horário de verão só reforçava a minha total dessintonia com a cidade àquela altura. Eu já abandonara qualquer forma de cumplicidade com o Rio havia meses, e agora eu me tornara praticamente um sociopata. Dali a 40 dias eu estaria pisando no glamouroso Velho Continente, Reino Unido, Londres, e isso nem de longe me tornava arrogante, mas me distanciava inevitavelmente de tudo. Em pouco mais de um mês eu ainda precisaria entregar resenhas na faculdade, garantir uma nota, fazer a prova de diplomação espanhola, pedir demissão do trabalho, economizar mais grana, confessar minha paixão platônica a duas colegas e me considerar escritor suficiente para encarar o que está por vir. Eu não faço a menor ideia do que está por vir e estou excitantemente apavorado - posso voltar apenas com meia dúzia de fotos e escritos soltos, morrer bêbado e congelado na Piccadilly Circus ou me tornar barman do Ministry of Sound e receber meus amigos com uísque escocês duas vezes por ano na lareira da minha casa pelo resto da vida.

Eu assistia a um quase decisivo Flamengo e Atlético Mineiro e não conseguia prestar a mínima atenção nos lances da partida. Há algum tempo eu ando numa relação de desencantamento com o futebol, tal qual uma criança no seu primeiro Natal após saber da inexistência do Velho Noel, ou outra dessas coisas que nos são arrancadas de forma quase brutal. Eu cheguei ao meu limite de tolerância com a brasilidade e, mais especificamente, com a carioquicidade, e ambas estavam representadas ali, no campo e em volta dele, o tempo inteiro, ajudando a esculpir nossa pífia identidade nacional. Eu já me vejo arrumando a mala.

O futebol é essa torre de marfim do imaginário coletivo? É o símbolo de conquista de uma democracia racial e, ao mesmo tempo, possibilidade de ascensão social? Ou é tão segregador e desigual como tudo que ocorre neste país do “vamos que vamos”? É remédio universal e veneno de si mesmo, sob a narrativa da “molecagem”, da “malandragem”, que perpetua essa caracterização abominável do brasileiro, do carioca. Flamengo e Atlético passaram 50% do tempo sem jogar bola, apenas batendo papo com o árbitro da partida. Bernard quis uma mão inexistente dentro da área no “esquema”, tal qual um flanelinha pedindo gorjeta descabida na Cinelândia. Vágner Love passou o jogo inteiro sem pegar na redonda, mas “desenrolou” um cartão amarelo para o defensor do Galo. Ronaldinho se atirou num teatro muito mal encenado na meia-lua, e o árbitro foi na dele, pois não é profissionalizado, não recebe o treinamento necessário e trabalha sempre no “mais ou menos”. E eu estava torcendo minimamente para o Flamengo, que corre risco de rebaixamento, quando vi Paulo Sérgio no banco - jogador de nível técnico duvidosíssimo, sumido desde abril e que de um dia para outro ressurgiu das cinzas ou, muito mais provável, das mãos de um empresário com “treta” na Gávea.

É insuportável falar disso justamente por achar que uma das causas para tanto fracasso social em todos os aspectos é esse “complexo de vira-lata”. Mas o fato é que, a 40 dias de uma cerveja num pub, estou nauseado de ainda estar aqui, andando no metrô superfaturado, ruim, onde as pessoas se acotovelam umas as outras e se pisoteiam em busca de um lugar, para no minuto seguinte se entreolharem com um risinho de canto de boca – “oh, que divertida a nossa vida de safari”.

Eu não aguento mais viver sob o ideário de uma “Cidade Maravilhosa”, como se uma foto noturna do Cristo Redentor justificasse um dos custos de vida mais caros do mundo. Como se a imagem icônica do Pão de Açúcar limpasse as ruas lotadas de mendigos e o cheiro de mijo por cada esquina, e os cidadãos passando na tangente, dando esmola motivados por uma certa culpa cristã, mas com nojo de tocar a mão do indigente. Como se o fato de falar mermo, ixqueiro e ser descolado “uhul” redimisse a responsabilidade por absolutamente nenhum serviço funcionar como deveria. Migué; tudo se construiu sobre o apego pelo migué irrestrito, em qualquer instância. Como a imagem metonímica que vejo agora de Ronaldinho com a mão na cintura, rindo e pedindo mais uma falta inexistente. E a lembrança da existência das cúpulas de futebol, das federações inescrupulosas, da CBF e de uma Copa do Mundo que está por vir, abafada pelas manchetes do Mensalão.

Eu só preciso do BA 4208 ligando as turbinas numa pista qualquer do Galeão Antônio Carlos Jobim, pronto para me levar longe da Bossa Nova, que não tem muita culpa, e de todo o resto. Os meus ouvidos entupidos pela pressão, felizes por não escutarem o que a senhora de cabelos grisalhos da poltrona ao lado - que está indo passar as festas de fim de ano com a filha recém-casada – tem a dizer ao marido barrigudo, duas poltronas a minha direita. Eu quero rock. Release me, Brasil.


Por Beto Passeri.        





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