domingo, 27 de maio de 2012

O Fim das Nações


Sexta-feira. Os relógios marcam cinco horas da tarde. Um exército invade a capital espanhola por duas frentes. Ávidos por uma revanche esperada por séculos, chegam obstinados ao front. O oponente não está presente: deu-se por vencido em batalhas passadas. Não foi capaz de fazer frente ao ímpeto dos oprimidos que encontraram na fragilidade atual do inimigo hegemônico secular uma oportunidade de vencer. A chance de derrubar limites impostos e desmentir inverdades que durante anos foram usadas como agente alienante da verdadeira condição popular. Não, eles não eram iguais. Não, eles não pertenciam ao  dominante. E quando os dois exércitos aliados se encontraram no plano campo verde, finalmente tomaram consciência de sua liberdade.

À beira do rio Manzanares, o contingente catalão e basco estende a bandeira da independência. O cenário mostra uma revolta sem o romantismo de outrora, com um simples suspiro de alívio. O estádio Vicente Calderón, no coração de Madrid, foi escolhido para ser a sede  do desfecho da batalha, sob a máscara de final da Copa do Rei. Representados por Barcelona e Athletic Bilbao respectivamente, os dois povos encontram no futebol a mais barulhenta maneira de se manifestarem contra a centralização espanhola e, por conseguinte, contra o ideal falido de Nação que ainda vigora no planeta.

Não há um discurso contra a ideia de pátria nem nas vozes vindas da Catalunha nem nas oriundas do País Basco. Por mais que sejam usadas, muitas vezes, como sinônimos, vale ressaltar a diferença entre as palavras Pátria e Nação. A primeira é um conceito concreto, delimitado por elementos topográficos, climáticos e linguísticos, por exemplo. A própria palavra tem como radical o mesmo que deu origem a palavra 'pai', demonstrando seu lado afável, sentimental. Por outro lado há a Nação, conceito artificial criado pelo Iluminismo, que tenta encontrar identidade em questões subjetivas e que serviu e continua servindo de motivação para o ódio e para a guerra ao redor do Planeta.

A prova maior de que os bascos não querem o fim da pátria é que o ETA, o grupo terrorista mais famoso que tenta pela força conseguir a independência, tem em sua sigla algo como 'Pátria Basca e Liberdade'. Por meio do terror, o grupo extremista nunca conseguiria tanta projeção quanto o clube de Bilbao alcançou em sua causa. Com um futebol envolvente que levou o  Athletic até a final também na Liga Europa, o elenco treinado por Marcelo Bielsa pôs em debate as questões que afligem o povo basco há séculos. E, quando observado o adversário do time Alvirrubro na final da Copa do Rei, a questão do nacionalismo espanhol é atingida de maneira mais voraz ainda.

O Barcelona, o time mais encantador do futebol atual, é o outro candidato ao título que esteve em campo em Madrid na sexta-feira. O catalão Barcelona, também envolvido por um espírito de identidade local, engrandece mais ainda a luta pela a revisão das fronteiras e a incandesce uma batalha mais abrangente: a extinção da visão nacionalista anacrônica na Era dos Arquivos MP3, na qual é cada vez mais fácil o fluxo de capital, de ideias e de pessoas. O sentimento de pertencimento é cada vez mais individual, menos subjugado à interesses alheios à vontade comunitária. O controle das massas se torna cada vez mais complicado.

Somados o anacronismo de uma monarquia e o enfraquecimento da economia europeia, é finalizada a obra-prima que foi o último episódio da temporada europeia de futebol. Um quadro real, mais iconoclasta do que todos os pintados por De La Corix. Ali, durante aqueles noventa minutos, celebrou-se o primeiro passo rumo a uma revisão de conceitos vazios, de ideias ocas. A final da Copa do Rei era tão representativa que gerou uma disputa política na confederação espanhola de futebol. Os finalistas sabiam o quão pulsante era aquele instante para a cultura basca e catalã e usaram de todos os seus poderes para jogar na capital da Espanha.

Obviamente o Barcelona não possui pouca influência no Planeta Bola. Maior campeão dos últimos anos, time festeja um novo estilo do jogo baseado no toque de bola, equipe que tem o melhor jogador da atualidade... todos predicados do maior clube do princípio do Século XXI. Foi por isso que o último jogo da competição eliminatória mais importante do reino de Juan Carlos lá aconteceu. Contudo, houve muita resistência para tal. O Real Madrid, eliminado pelo Barça antes de chegar à decisão, não aceitou que seu estádio fosse sede da cerimônia de libertação que aquela partida representava. Entretanto, nenhuma das pressões políticas foi capaz de silenciar a tomada da capital. Não dessa vez.

O jogo? 3 a 0 para o Barcelona, em uma apresentação invisível de Messi e grandiosa de Xavi e Iniesta. Pouco importa. O esporte foi veículo para a difusão de um brado estrangulado. Sem sangue, sem morte, a exposição das ideias só feriu àqueles presos ao velho Mapa Mundi. Na comunhão entre jogadores e torcedores que aconteceu no fim do jogo, foi registrado na História o marco inicial de novos tempos; quando fronteiras não impedirão o pensamento, quando governos não mais serão sinônimos de opressão lá estará também o futebol, para continuar sublimando e apaixonando seus fãs indecorosos.

Por Helcio Herbert Neto.
                                                                                                                    

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