Outro
dia eu estava assistindo, como de costume, ao excelente Café Filosófico, que a TV Cultura
exibe às 22h de todo domingo – e que tende a encerrar a angústia dominical de
forma muito mais digna do que o fantásticos programas de variedade onde quem
faz três gols canta.
Ontem
o Flamengo não fez três gols. A torcida cantou, mas não só. Vaiou também.
Mas,
voltando ao programa de palestras da Cultura, um psiquiatra falava do efeito da
massa sobre o ethos.
Dizia ele que uma pessoa que em hipótese alguma mataria outra pessoa, às
vezes pode fazer isso de forma bárbara quando em grupo. Jovens que
individualmente obedeceriam à maioria dos códigos morais que herdaram de suas
famílias de repente se transformam em um grupo de sujeitos capazes de estuprar
uma mulher ou matar um homossexual de porrada na noite da cidade. Estranho
fenômeno.
No
empate entre Flamengo e Bolívar, no Maracanã, a insatisfação começou a ser sentida
ainda no primeiro tempo. Conheço o Maracanã há muito tempo, quase 25 anos,
conheço muito bem a torcida do Flamengo. E, mesmo do sofá da minha sala,
percebo quando o clima está tenso. E ontem estava, não sei por quê.
Aos 30 da primeira etapa ouvi os primeiros agudos.
Aos
trinta e tantos do segundo, quando a torcida já havia escancarado sua intenção
de criticar o time com a última vogal em alto e bom som, olhei bem para o rosto
do lateral esquerdo João Paulo, em close-up
na TV. Ele tinha os olhos arregalados, a musculatura da face contraída. Falta
na entrada da área, boa chance para o gol da virada. O repórter diz: “João
Paulo tem treinado muito bem, acertado quase todas as faltas que bate no
treino”. O cara bateu e isolou bisonhamente a bola. Respirou fundo, abaixou a
cabeça e correu para recompor sua posição.
Antes
que digam qualquer coisa, já vaiei e xinguei jogadores no. Ainda hoje xingo
quando o sangue sobe a cabeça. Mas isso também acontece com pessoas muito
próximas a mim e que eu amo muito. Xingar é paixão, faz parte e é perdoável.
Mas vaiar, não vaio, nunca mais. E hoje me
sinto mal pelo Maurinho, pelo Cássio, pelo Jean, pelo Andrezinho, e por tantos
outros. Pediria desculpas a eles, se pudesse fazer isso.
Comecei
a acompanhar futebol de verdade no começo da década de 90 e nunca vi o Flamengo
ganhar um título sequer jogando o fino da bola. Nunca. Vi esporádicas
apresentações maravilhosas, sendo a mais recente delas os 4 a 0 no Botafogo,
nas quartas da Copa do Brasil em 2013. Mas foi uma. Depois, jogou mal contra o
Goiás, apesar de ter ganhado e, mesmo na final contra o Atlético, demorou 80 e
tantos minutos para abrir o placar.
Foi
assim também em 92, quando uma atuação memorável – 3 x 0 sobre o mesmo
Botafogo, no jogo de ida da final – sacramentou um título que foi conquistado
no suor por um time profundamente limitado (Charles Guerreiro e Piá faziam as
laterais). Sempre foi assim: crise, bafo no quengo, futebol meio sofrível, de
repente um dia alguém faz um gol incrível ou dá um pique de 70 metros por um
desarme e a torcida vira uma chave, empurra o time e o Flamengo leva no
vamo-que-vamo. Às vezes, sei lá por que cargas d’água, a torcida fica exigente,
acha que é o Flamengo tem que ser a máquina do Zico de novo, ou cria a
expectativa falsa de que o Muralha deveria ser o Andrade e assim por diante.
Nesses caso, invariavelmente, o Flamengo afunda. Porque, evidentemente, a força
que a torcida flamenguista tem para empurrar é quase a mesma que a força que ela
emprega para ancorar o time no fundo. Física menos newtoniana do que quântica,
mas o fato é que o bicho pega.
No
jogo da noite passada, talvez não houvesse jeito, mas tudo poderia ser
diferente se os jogadores não sentissem, aos 30 do primeiro tempo, o bafo da
insatisfação resfolegando na arquibancada. Foram 60 minutos jogando sob pressão
intensa, o que resultou em falta de maturidade, na ânsia de resolver aquilo
logo, o que causou as saídas desesperadas e deu os contra-ataques que o Bolívar
aproveitou. O time é ruim? Claro que é. Todos são no futebol sul-americano
atual, infelizmente. O time é muito pior que outros na Libertadores? Não, logo
pode conquista-la. Mas só se jogar no limite de suas forças e tiver um Maracanã
apoiando incondicionalmente ao lado. Só assim a coisa pode acontecer, como
aconteceu nos grandes títulos que o clube levantou nas últimas duas décadas e
meia.
O
que isso tem a ver com o problema do comportamento em grupo que suspende as
amarras éticas e morais e pode, no limite,
transformar vários sujeitos pacatos individualmente numa gangue de
pusilânimes? Tudo.
Vaiemos
o Blatter, a Dilma, o FHC, o Pato, que ganha zilhões para manter o saco de
molho em água morna durante os jogos, vaiemos até o Carlos Eduardo, que ganha
550 mil mensais e sempre parece ter acabado de acordar. São pessoas calejadas
pelo tamanho da responsabilidade que carregam e muito bem recompensadas por
isso – o ônus e o bônus do poder. Vaiem o Real Madrid e o Bayern de Munique,
que fizeram sua história recente em cima do aliciamento de jogadores de seus
adversários, matando por asfixia os seus campeonatos locais. Vaiem o poderoso,
o opressor.
Não
vaiemos um jogador limitado de 25 anos de idade que joga o primeiro jogo
internacional de sua carreira, e logo pelo Flamengo. Não arrasemos um time que
conquistou um título nacional ganhando de todo o G4 do Brasileirão num ano em
que pagamento de dívidas e crises de bastidores foram a pauta diária no clube.
Não acreditemos no canto da sereia dos noticiários que fizeram alarde pelas
contratações. Não nos iludamos: o time continua sendo ruim, mas tanto quanto os
outros. Não oprimir quem também é
oprimido e usar a força do conjunto para a coragem e não para a covardia.
Talvez seja mais produtivo.
É
como tudo na vida. Com apoio, há alguma chance de um sujeito “limitado” se
superar, realizar alguma coisa e ajudar a transformar a realidade ao seu redor.
Sem apoio, mesmo um cara brilhante pode naufragar no oceano que é um
auto-estima em baixa. É uma escolha: queremos destruir as coisas porque estamos
muito putos e frustrados com o mundo e porque, estando em grupo, temos poder
para isso? Ou preferimos trabalhar em colaboração para construir alguma coisa
significante, ainda que isso aparentemente exija um sacrifício um pouco maior do
próprio desejo e do ego?
A
propósito, isso vale também para times de futebol.

Por Bruno Passeri.
Nenhum comentário:
Postar um comentário