Onde descansou por anos o odor
cadavérico, hoje resplandecem levianos urros fanáticos. Um absurdo, sem dúvida
– contestam desavisados que passam por aquele monumento de concreto e grama
próximo à estação Ñuble, na linha verde do metrô de Santiago. Logo nesta
cidade, capital mundial dos direitos humanos, que celebra a faca que apunhalou
seu povo para a mão opressora nunca mais desferir golpes. Além dos estrondos
monumentais que assolam a vizinhança sempre que o placar muda, ainda há uma
corja de desocupados, velhos e obesos que buscam o sótão maior das Forças
Armadas e de Ordem para se exercitar (ou pelo menos dizem isso a suas esposas,
quando na verdade a motivação maior é o álcool posterior): postura bestial –
alardeiam as mesmas vozes vãs.
Depois que o sonho da Via Chilena
para o Socialismo se esvaiu perante o bombardeio da Junta Militar, no dia 11 de
setembro de 1973, o Estádio Nacional de Santiago se tornou uma espécie de campo
de concentração do regime. Uma Auschwitz para subversivos – vale lembrar
que a ditadura comandada por Augusto Pinochet foi tardia e, portanto, eram
muitos os exilados de outras nacionalidades nessas terras. A cúpula reunia aeronáutica, marinha,
exército e polícia e assumiu o poder atacando o único presidente socialista
eleito pelo voto popular da História. A perseguição aos opositores ao regime
ditatorial foi sanguinária e o numero de mortos, espantoso.
Nos mesmos metros onde os corpos
fuzilados pelos militares despencavam ainda quentes, hoje é possível jogar
futebol amador. Sim, qualquer perna-de-pau que resolver convidar os amigos e
alugar o campo pode fazê-lo. Na psicologia pragmática desses dias, uma afronta.
Além disso, a Universidad de Chile (campeã da Copa Sul-Americana de 2011 que
não possui estádio) também aluga o espaço para mandar suas partidas. A velha
tendência à carnavalização dos trópicos, bradam os mesmos indignados que,
agora, após se decepcionarem com os novos usos do complexo esportivo, não
disfarçam o asco com as tendas de comerciantes de rua que lotam as calçadas
próximas ao terminal.
Após a última partida do dia, o
terreno descansa frio. Distante do calor das têmporas que ali repousavam ou da
pólvora assassina que atravessava cérebros que, por mais inverossímil que
pareça hoje, acreditavam em um mundo melhor, igualitário. Como dorme tranquilo o solo amaldiçoado pela vaidade totalitária?
Os queixosos visitantes, neste
momento já em seus hotéis, consomem o futebol como lhes é peculiar: comprando
camisas em páginas de compras coletivas na internet ou comentando uma
reportagem sobre a queda do treinador do time rival, postada em algum site de
esportes. Em seus países, não vão aos jogos de seus times – é muito perigoso. Preferem a caipifruta do bar bacana da praça. Publicam, no entanto, nas redes sociais, sempre comentários sobre futebol. São fanáticos.
Mal sabem que a paz que
atualmente jaz nos gramados e arquibancadas do Estádio Nacional é fruto de cada
alegria e tristezas vividas por quem atravessa agora aqueles portões. Porque
sim, essa é a função primordial do esporte, reviver o grunhido primal, liberar
catarses. Ninguém no Chile questiona a nova existência do templo da barbárie
ditatorial. Do extrato etéreo que sai dos poros, dos gritos e dos pés de quem
agora vivencia o monumento que tem os Andes como pano de fundo é feita a
redenção de um povo e de uma construção. E os queixosos? Esses nunca vão
entender.
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