segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Conto de uma renascença


                                                                                                                                 
Onde descansou por anos o odor cadavérico, hoje resplandecem levianos urros fanáticos. Um absurdo, sem dúvida – contestam desavisados que passam por aquele monumento de concreto e grama próximo à estação Ñuble, na linha verde do metrô de Santiago. Logo nesta cidade, capital mundial dos direitos humanos, que celebra a faca que apunhalou seu povo para a mão opressora nunca mais desferir golpes. Além dos estrondos monumentais que assolam a vizinhança sempre que o placar muda, ainda há uma corja de desocupados, velhos e obesos que buscam o sótão maior das Forças Armadas e de Ordem para se exercitar (ou pelo menos dizem isso a suas esposas, quando na verdade a motivação maior é o álcool posterior): postura bestial – alardeiam as mesmas vozes vãs.

Depois que o sonho da Via Chilena para o Socialismo se esvaiu perante o bombardeio da Junta Militar, no dia 11 de setembro de 1973, o Estádio Nacional de Santiago se tornou uma espécie de campo de concentração do regime. Uma Auschwitz para subversivos – vale lembrar que a ditadura comandada por Augusto Pinochet foi tardia e, portanto, eram muitos os exilados de outras nacionalidades nessas terras. A cúpula reunia aeronáutica, marinha, exército e polícia e assumiu o poder atacando o único presidente socialista eleito pelo voto popular da História. A perseguição aos opositores ao regime ditatorial foi sanguinária e o numero de mortos, espantoso.

Nos mesmos metros onde os corpos fuzilados pelos militares despencavam ainda quentes, hoje é possível jogar futebol amador. Sim, qualquer perna-de-pau que resolver convidar os amigos e alugar o campo pode fazê-lo. Na psicologia pragmática desses dias, uma afronta. Além disso, a Universidad de Chile (campeã da Copa Sul-Americana de 2011 que não possui estádio) também aluga o espaço para mandar suas partidas. A velha tendência à carnavalização dos trópicos, bradam os mesmos indignados que, agora, após se decepcionarem com os novos usos do complexo esportivo, não disfarçam o asco com as tendas de comerciantes de rua que lotam as calçadas próximas ao terminal.

Após a última partida do dia, o terreno descansa frio. Distante do calor das têmporas que ali repousavam ou da pólvora assassina que atravessava cérebros que, por mais inverossímil que pareça hoje, acreditavam em um mundo melhor, igualitário. Como dorme tranquilo o solo amaldiçoado pela vaidade totalitária?

Os queixosos visitantes, neste momento já em seus hotéis, consomem o futebol como lhes é peculiar: comprando camisas em páginas de compras coletivas na internet ou comentando uma reportagem sobre a queda do treinador do time rival, postada em algum site de esportes. Em seus países, não vão aos jogos de seus times – é muito perigoso. Preferem a caipifruta do bar bacana da praça. Publicam, no entanto, nas redes sociais, sempre comentários sobre futebol. São fanáticos.  


Mal sabem que a paz que atualmente jaz nos gramados e arquibancadas do Estádio Nacional é fruto de cada alegria e tristezas vividas por quem atravessa agora aqueles portões. Porque sim, essa é a função primordial do esporte, reviver o grunhido primal, liberar catarses. Ninguém no Chile questiona a nova existência do templo da barbárie ditatorial. Do extrato etéreo que sai dos poros, dos gritos e dos pés de quem agora vivencia o monumento que tem os Andes como pano de fundo é feita a redenção de um povo e de uma construção. E os queixosos? Esses nunca vão entender.

por Helcio Herbert Neto.                                                                             

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