terça-feira, 14 de agosto de 2012

Deuses do Nunca



E nasceu no interior de Deus me livre, pau-a-pique, farinha, vira-lata, teia de aranha, ¿e a água?, a mãe que chora, o pai que abraça, o lago imundo, o mangue fétido, balsa-barco-ônibus para a escolinha de 11 alunos, menos que a quantidade de irmãos (14), e um professor - tia -, tia Vera. Vera sofrida, faz por amor, leva quentinha de casa e alimenta as crianças que passam oito horas com meia bisnaga até a hora da redenção.

Agora é pesadelo passado, lembrança mal gerada, aperto ruim no peito, ¿quimera?

E não para, não para, não cansa, não bate.
Sente a fome de outrora que hoje é outra,
Vê a meia-luz da cozinha velha na água,
na pista, no ginásio, no ringue.
E o cloro queima os olhos como o esgoto já queimou,
as argolas ferem os braços tal qual fez o coqueiro.
Aquele, seco, do quintal, que sangrou o moleque e depois se desculpou
E vai à lona na porrada, ô, menos doída que a de três covarde irmão

E de chafurdado na bosta do vira-lata perneta dissolvida na chuva sob o sol preguiçoso de um fim de tarde no Nunca, se projeta à frente do american dream, do robô chinês, e é o melhor do planeta na Terra da Rainha sob os olhares de milhões de TVs que ele nunca teve. Por alguns milésimos, minutos, provas. E na cabeça do abnegado uma telepatia peculiar nos instantes finais.

O cheiro da panela de barro
na torcida
O barulho do siri nas pedrinhas
na torcida
A mãe que chora, o pai que abraça
A Vera já velha,
os irmãos nem tão covardes
O vira-lata morto,
o coqueiro tombado
O primeiro técnico,
o primeiro treino
na torcida

E o americano passa, o russo derruba, o inglês se recupera, o chinês não erra, mas há tempo e espaço para recordar dos seus dez colegas de classe, dos dez colegas de classe dos outros, e dos outros, e dos outros mais; sem sorte, sem talento, natimortos. É só ele ali, e o ouro vai escapar. Escapa. Mas é prata, é bronze. Segundo, terceiro melhor do planeta. No último pau de arara, a joia rara.

Não melhora a condição do quadro de medalhas do país que nunca melhorou a sua de vida. Do mangue pro cloro, sem nunca ter visto um filtro; do galho pra argola, sem nunca ter visto um braço. De Deus me livre para a TV, sem nunca ter visto a vida. E chiam. E xingam o deus do Nunca.



Por Beto Passeri.

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