Sexta-feira. Os relógios marcam cinco
horas da tarde. Um exército invade a capital espanhola por duas frentes. Ávidos
por uma revanche esperada por séculos, chegam obstinados ao front. O oponente não está
presente: deu-se por vencido em batalhas passadas. Não foi capaz de fazer
frente ao ímpeto dos oprimidos que encontraram na fragilidade atual do inimigo hegemônico secular uma oportunidade de vencer. A chance de derrubar limites impostos
e desmentir inverdades que durante anos foram usadas como agente alienante da
verdadeira condição popular. Não, eles não eram iguais. Não, eles não
pertenciam ao dominante. E quando os dois exércitos aliados se
encontraram no plano campo verde, finalmente tomaram consciência de sua liberdade.
À beira do rio Manzanares, o contingente
catalão e basco estende a bandeira da independência. O cenário mostra
uma revolta sem o romantismo de outrora, com um simples suspiro de
alívio. O estádio Vicente Calderón, no coração de Madrid, foi
escolhido para ser a sede do desfecho da batalha, sob
a máscara de final da Copa do Rei. Representados por Barcelona e Athletic
Bilbao respectivamente, os dois povos encontram no futebol a mais barulhenta maneira
de se manifestarem contra a centralização espanhola e, por conseguinte, contra
o ideal falido de Nação que ainda vigora no planeta.
Não há um discurso contra a ideia de
pátria nem nas vozes vindas da Catalunha nem nas oriundas do País Basco. Por
mais que sejam usadas, muitas vezes, como sinônimos, vale ressaltar a diferença
entre as palavras Pátria e Nação. A primeira é um conceito concreto, delimitado
por elementos topográficos, climáticos e linguísticos, por exemplo. A própria
palavra tem como radical o mesmo que deu origem a palavra 'pai', demonstrando seu
lado afável, sentimental. Por outro lado há a Nação, conceito artificial criado
pelo Iluminismo, que tenta encontrar identidade em questões subjetivas e
que serviu e continua servindo de motivação para o ódio e para a guerra ao redor do
Planeta.
A prova maior de que os bascos não querem
o fim da pátria é que o ETA, o grupo terrorista mais famoso que tenta pela
força conseguir a independência, tem em sua sigla algo como 'Pátria Basca e Liberdade'. Por meio do terror, o grupo extremista nunca conseguiria tanta projeção
quanto o clube de Bilbao alcançou em sua causa. Com um futebol envolvente que levou
o Athletic até a final também na Liga
Europa, o elenco treinado por Marcelo Bielsa pôs em debate as questões que afligem
o povo basco há séculos. E, quando observado o adversário do time Alvirrubro na
final da Copa do Rei, a questão do nacionalismo espanhol é atingida de maneira
mais voraz ainda.
O Barcelona, o time mais encantador do
futebol atual, é o outro candidato ao título que esteve em campo em Madrid na
sexta-feira. O catalão Barcelona, também envolvido por um espírito de
identidade local, engrandece mais ainda a luta pela a revisão das fronteiras e
a incandesce uma batalha mais abrangente: a extinção da visão nacionalista anacrônica na
Era dos Arquivos MP3, na qual é cada vez mais fácil o fluxo de capital, de
ideias e de pessoas. O sentimento de pertencimento é cada vez mais individual,
menos subjugado à interesses alheios à vontade comunitária. O controle das
massas se torna cada vez mais complicado.
Somados o anacronismo de uma monarquia e o enfraquecimento da economia
europeia, é finalizada a obra-prima que foi o último episódio da temporada europeia de futebol. Um quadro real, mais iconoclasta do que todos os pintados por
De La Corix. Ali, durante aqueles noventa minutos, celebrou-se o primeiro passo
rumo a uma revisão de conceitos vazios, de ideias ocas. A final da Copa do
Rei era tão representativa que gerou uma disputa política na confederação
espanhola de futebol. Os finalistas sabiam o quão pulsante era aquele instante
para a cultura basca e catalã e usaram de todos os seus poderes para jogar na
capital da Espanha.
Obviamente o Barcelona não possui pouca
influência no Planeta Bola. Maior campeão dos últimos anos, time festeja um
novo estilo do jogo baseado no toque de bola, equipe que tem o melhor jogador
da atualidade... todos predicados do maior clube do princípio do Século XXI.
Foi por isso que o último jogo da competição eliminatória mais importante do
reino de Juan Carlos lá aconteceu. Contudo, houve muita resistência para tal. O
Real Madrid, eliminado pelo Barça antes de chegar à decisão, não aceitou que
seu estádio fosse sede da cerimônia de libertação que aquela partida
representava. Entretanto, nenhuma das pressões políticas foi capaz de silenciar
a tomada da capital. Não dessa vez.
O jogo? 3 a 0 para o Barcelona, em uma
apresentação invisível de Messi e grandiosa de Xavi e Iniesta. Pouco importa. O esporte foi veículo para a difusão de um brado estrangulado. Sem sangue, sem morte, a exposição das ideias só feriu àqueles presos ao velho Mapa Mundi. Na comunhão entre jogadores e torcedores que aconteceu no fim do jogo, foi
registrado na História o marco inicial de novos tempos; quando fronteiras não
impedirão o pensamento, quando governos não mais serão sinônimos de opressão lá
estará também o futebol, para continuar sublimando e apaixonando seus fãs
indecorosos.
Por Helcio Herbert Neto.
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