Não basta ser razoável. Não basta ser passional. Para a opinião pública, é necessário ser asceta. (Marcelo Sadio/Divulgação)
Fim de ano. Queixas infindáveis formam filas, talvez motivadas pelas contas que eclodirão em poucos dias, no começo do próximo exercício. Talvez pelo acúmulo de querelas, composto nos últimos, longos e sufocantes meses. Cansados de expor as críticas em redes sociais, multidões se aglutinam para submeter as reclamações em busca de repercussão. A procissão caminha rumo a um ente metafísico, poderosíssimo -- a opinião pública.
Talvez este espectro tenha, hoje, o vulto da Igreja no medievo. Ou o poder que os bigodes de Stalin tinham entre os soviéticos no século passado. A opinião pública é o símbolo maior da moral. É o centro de tudo, todos buscam a recepção e a repercussão. Para operar de forma eficiente, distribui-se em agências próximas, nas esquinas. Como as bancárias. E assim como os bancos, reúne fileiras infindáveis em certos (e recorrentes) eventos.
Entre os tantos que ali estavam naquele período perto das festas, havia um pacato cidadão. Como tantos, mas este requer um olhar especial. E não me refiro ao intenso monitoramento das câmeras de segurança. O figurão levava consigo uma calhamaço de papel, pesado e amassado. Reunia ali os argumentos sobre os quais desejava lançar luz. Não tinha a preferência dos atendimentos personalizados e teve que digerir a espessa manhã de espera.
Finalmente, chegou ao atendimento e entregou ao atarefado funcionário atrás do balcão. Este olhou os documentos e os encaminhou à comissão julgadora. Voltou vinte e três minutos depois.
"Infelizmente, suas reclamações foram indeferidas."
"Mas por quê? Todos os argumentos aí estão."
"Todas as reclamações não atenderam o mesmo critério. Tópico 66: ascese requerida", justificou o atendente, apontando para a lista de regras, presa na parede.
O homem que solicitava interpelou, na tentativa de solucionar o problema. Neste momento, uma lágrima rolou pelas suas costas. Embora o condicionador de ar estivesse ligado, o volume de gente consumia todo o frescor do aparelho, deixando na atmosfera somente o calor.
"Os doutos da opinião pública exigem ascese para aceitar reclamações. Veja o caso da sua primeira reivindicação: a fragilidade dos programas sociais do governo! Você quer que eles sejam expandidos", exemplificou, exaltado, o funcionário.
"E qual o problema?", questionou, pacato.
"Você estudou a vida inteira em colégios particulares. Tem o carro lançado no ano passado. Passou longe de conviver fome", explicou o rapaz da agência. O moço balançou a cabeça, como que não entendendo nada do que vinha do outro lado da mesa.
"Você não pode pedir pelo que não te afeta. Não faz sentido. É incoerente. Seus argumentos são até cabíveis, mas você nunca viveu a miséria. Ninguém aceitaria", continuou o atendente.
"Eu tenho que militar na pobreza, pelo que você está falando."
"Não fale isso! A opinião pública odeia a palavra militância. Sua situação não é das piores. Só falta um documento. É só você voltar com o comprovante de dez anos de risco social."
"Tenho que morrer de fome para que aceitem essa reclamação como verossímil?", perguntou, incrédulo, o senhor. Foi respondido como impaciência.
"Meu caro, você faz o que quiser. Só com o comprovante o pessoal vai aceitar", cortou o funcionário.
"E quanto à outra queixa?", perguntou o requerente.
O jovem começou a folear a reclamação seguinte, com receio que o inquieto rapaz do outro do balcão visse os impropérios que a comissão havia rabiscado, com caneta vermelha, nas páginas do cuidadoso dossiê. Respirou fundo e sentenciou:
"Meu senhor, você reclama aqui dos resultados do seu time de futebol. Mas você não tem o cartão diamante de sócio-torcedor, só foi oito vezes ao estádio assistir aos jogos. E mesmo assim foi usando camisas muito antigas, da década passada. Não contribui com a renda do clube. Não sofre nem acompanha. Apuramos também que você não sabe quando o seu time foi bicampeão nacional. Novamente, portanto, tópico 66."
Faltaram-lhe palavras. Pensou em lembrar que, entre os argumentos, estava a corrupção dos dirigentes. Nos papéis, também justificava a baixa adesão dos torcedores com o aumento do valor dos ingressos. Descartou a tentativa de continuar reforçando a reclamação. A opinião pública é implacável. Antes de sair da fila, balbuciou que o clube era o maior amor de sua vida. Abalado, chegou em casa, ligou o computador e postou em uma rede social ambas as queixas. Duas pessoas curtiram: sua mãe, já idosa; e um amigo seu de colégio, que não via há décadas.
Ninguém comentou. Ninguém compartilhou. Os argumentos caíram no esquecimento.
Por Helcio Herbert Neto.